A campainha soou, anunciando a hora de jantar. O tio não queria ninguém a gritar pela casa, à exceção dele próprio. Madalena desceu até à cozinha, onde pairava uma atmosfera morna e deliciosamente odorífera. Conceição, a cozinheira, acabara de retirar do forno um tabuleiro de pastéis de massa folhada recheados com carne.
-Que bom! Estou esfomeada!
– Coma a sopa, que este primeiro tabuleiro é para a sala; o seu tio e a serigaita já estão à espera do prato principal.
Os muitos anos de casa davam a São um à-vontade inusitado naquele tempo e no lugar social que ocupava. O tabuleiro foi levado para a sala por outra serviçal, Miquelina. Madalena sentiu de repente um enorme apetite e devorou a sopa, os pastéis e arroz-doce.
– São, que doença tem o Januário?
São e Miquelina entreolharam-se. Depois de um breve silêncio, São respondeu:
– Que eu saiba. menina Lena, o Januário não está doente.
– Então, porque temos um jardineiro novo?
– Foi assunto tratado pela bruxa; um dia, chamou o Januário ao escritório, entregou-lhe uma boa maquia e depois, ele despediu-se, a dizer que ia de férias prolongadas… e forçadas.
Madalena ficou abismada. Mas, como sempre, seria um mistério acerca do qual lhe era interdito fazer perguntas ao tutor ou à cínica da secretária.
– Bem, boa-noite!
– Até manhã, se Deus quiser, menina!
Madalena subiu as escadas pensativamente. Que coisa tão estranha! Alguém mentira sobre Januário e só podia ser a perversa Lobélia. Mas porquê? Estes pensamentos não a deixaram enquanto fazia os preparativos para se deitar; vestiu uma camisa de noite e recostou-se nas confortáveis almofadas, disposta a continuar a leitura de “Os Maias” que iniciara nessa semana. Apesar do fascínio da obra, não conseguiu concentrar-se no romance, já que os acontecimentos do dia lhe ocupavam o pensamento. Desligou o candeeiro da mesinha de cabeceira e aconchegou-se para dormir. Mas antes de conciliar o sono, deu voltas na cama e na cabeça, com o caleidoscópio das imagens da tarde: os olhos claros rasgados no rosto perfeito, desenhado a traço de pincel, o cabelo louro escuro, liso e curto, o sorriso sedutor, de dentes muito brancos, traçados à régua, a voz cálida, as mãos muito brancas, os ombros largos, a elevada estatura, o corpo com as medidas certas… Seria um jardineiro ou um príncipe disfarçado, como no romance de Zola que lera há pouco tempo, “O Sonho”? Um sonho, muitos sonhos acabou por ter ao longo dessa noite: estava de novo no jardim e Paulo, que no sonho se chamava Apolo, oferecia-lhe rosas brancas e sorrisos galantes; estendia-lhe as mãos, tomando as suas e ambos percorriam o jardim, entrelaçados e felizes, até que, de repente, ambos ainda com flores nas mãos, deixaram de estar no jardim e viram-se no cemitério, diante do túmulo dos pais de Madalena; a mudança de cena fê-la dar um grito e virar-se para o companheiro, contudo, já não era Paulo que lá estava, mas Antínoo, o belo e malogrado jovem grego, amante de Adriano. Interpelou-o, mas, afinal, não passava de uma estátua. Ela estava só, no imenso cemitério, apenas rodeada de estátuas. Acordou, aterrorizada, transpirada, em lágrimas! Fora um horrendo pesadelo!
Apercebeu-se de que o sol ia alto e correu para a luz, abrindo os reposteiros e as janelas, para deixar entrar um sol radioso. O jardim cheirava bem às alfazemas que abundavam sob as sacadas e o seu perfume inundava o quarto. Ouvia-se o som de uma tesoura de poda. Espreitou pela janela e viu Paulo, de costas para a casa, a acertar os buxos, o cabelo louro a brilhar ao sol, as mangas da camisa arregaçadas, deixando ver os braços musculosos, a cintura estreita, as calças justas … Parecia um bailarino! Sentiu o coração de novo a acelerar e a temperatura a subir.
Num impulso, correu para a banheira e tomou um duche frio. Depois, escolheu um vestido branco salpicado de miosótis azuis, soltou os longos cabelos loiros encaracolados e desceu até ao jardim.
– Bom-dia, Paulo!
– Bom-dia, menina! Gosta de tulipas e margaridas?
– Gosto de todas as flores, Paulo.
Encaminharam-se para as moitas das margaridas, conversando. Madalena fez-lhe perguntas sobre a terra dele, uma aldeia na serra da Estrela, a família dele. Ele tinha apenas 19 anos, mas quisera viver na cidade. Tudo o que ele dizia afigurava-se interessantíssimo à jovem. Passou a manhã entre o jardim e as estufas, com ele, fingindo escolher mais flores do que as necessárias …se é que as flores são necessárias; “A rosa é sem porquê” – Madalena recordava mentalmente a expressão do místico Silesius. Pensou citá-la a Paulo, mas não, ele não ia entender. Aqueles momentos mágicos foram interrompidos pela sineta a tocar para o almoço. Madalena dirigiu-se para casa e desta vez, surpreendeu a espionagem de Lobélia, escondida por detrás de uma fila de tuias.
Depois do almoço, Madalena voltou ao encontro de Paulo, a pretexto de sementeiras e de bolbos de narcisos para a próxima Primavera. O jovem não se mostrou surpreendido, pelo contrário, animou-se a conversar sobre jardins e plantas e que iam ter muitas camélias no Inverno e por aí fora, num longo etc. É bem verdade que não importa o tema da conversa, mas a pessoa com quem se está.
Assim decorreu o sábado e também o domingo (Madalena nem se interrogou sobre o porquê deste jardineiro trabalhar em dia santo, coisa que Januário nunca fez). No domingo à noite, teve que voltar para o colégio, com redobrada pena.
No colégio das doroteias, a semana passou mais lentamente do que o costume para Madalena, impaciente por voltar a casa e ao jardim. Mas, quando finalmente chegou sexta-feira, a nossa colegial sentiu-se tomada de um alvoroço febril, de uma alegria esfuziante, de um sentimento tão intenso de felicidade como nunca experimentara!
O fim-de-semana foi maravilhoso, tal como o anterior e os que se lhe seguiram. A vida para Madalena atingia a apoteose da felicidade aos sábados e domingos, em que a relação com Paulo se ia tornando mais e mais próxima. Ele beijara-a pela primeira vez no caramanchão das glicínias, deixando-a delirante de alegria! O jardim, qual novo Éden, multiplicava os recantos de beleza e as semanas passavam num crescendo de amor e de paixão! Madalena estava em tal estado de euforia que já não se ralava nada com a espia do tutor, nem com os seus sorrisos pérfidos. Estava feliz como nunca!
Entretanto, tinham passado cerca de dois meses. Era outra vez sexta-feira. Madalena estava de volta a casa. Tudo se passou como de costume: o jantar, as conversas com a São e a Miquelina, a subida para o quarto. Preparou-se para dormir, mas quando abriu os cortinados da cama de dossel, teve que se conter para não soltar um grito: estendido na cama, completamente nu, a pele branca nas sedas cor-de-rosa, os músculos bem esculpidos, estava o belo deus grego, objeto da sua paixão, sorrindo sedutoramente.
– Sou teu, Lena – murmurou em voz doce e terna. E tu, és minha?
Madalena sentiu-se a desfalecer de emoção e desejo: sim, Paulo era tudo o que ela desejava e, serem um do outro, a aspiração máxima de quem está apaixonado. A noite foi a cúmplice silenciosa dos seus amores.
No dia seguinte, Madalena acordou cedo, mas Paulo já não estava no quarto. Foi dececionante, mas ele devia ter que fazer no jardim.
Madalena tomou banho a cantar o tema de Julieta “Je veux vivre”, que traduzia todo o seu estado de espírito. Perfumou-se, vestiu-se de vermelho, colocou algumas joias e desceu para a cozinha alegremente. São e Miquelina saudaram-na e brindaram-na com o pequeno-almoço delicioso habitual. Madalena comeu à pressa e correu para o jardim. Procurou Paulo por toda a parte, mas não o encontrou. Junto das roseiras, teve uma surpresa: o velho Januário, de pá na mão, plantava azáleas.
– Bom-dia, Januário!
– Bom-dia, menina!
– Esteve doente?
– Eu não, menina. A D. Lobélia mandou-me de férias por uns tempos e agora voltou-me a chamar.
– E o outro jardineiro?
– Quem?
– O Paulo, o que esteve no seu lugar.
– Não sei, menina, não o conheço.
Madalena ficou siderada. Voltou à cozinha e interpelou as serviçais.
– Onde está o Paulo?
– Não sabemos, menina. Só reparámos que o Januário voltou.
Foi o desespero! Como podia ser aquilo? Obra da Lobélia, sem dúvida. Desta vez, foi falar com ela, irrompendo pelo escritório:
– Onde está o jardineiro?
Lobélia trocou um sorriso cúmplice com o tio Hildebrando.
– O Januário está no jardim.
– Sabes muito bem que me refiro ao Paulo.
– Foi-se embora.
O tio interveio:
– Vê como falas com a Lobélia. De qualquer forma, este é o teu último fim-de-semana em casa. Vais ficar no colégio até ao Natal.
A jovem empalideceu, sentindo que o chão lhe fugia. Sem conseguir articular palavra, saiu dali, ouvindo-os rir. Foi vestir um agasalho e escapuliu-se de casa, sem dizer nada a ninguém. Percorreu as ruas de Viseu à procura de Paulo, baldadamente; nem sequer sabia a morada dele. Desvanecera-se como uma miragem.
Regressou ao colégio no dia seguinte, mas as deambulações febris pela cidade em busca de Paulo tornaram-se uma obsessão. Parecia-lhe sempre que via a figura dele noutros rapazes, mas nunca era ele. Desaparecera como o sal na água.
Até que um dia, numa rua um pouco escusa, o viu! Apressou a marcha, com o coração a bater descompassado, e de repente, estacou: Paulo dirigia-se a uma pensão manhosa, onde entrou, levando pelo braço uma mulher… Lobélia! Madalena sentiu um frio a percorrer-lhe o corpo todo, a ponto de não conseguir parar de bater os dentes, completamente enregelada! Correu para o tio a contar-lhe o que vira e a única resposta dele foi “Hum”. E ao contrário do que a sobrinha esperava, nem por isso despediu a secretária!
Era este imenso desgosto que Madalena levara para Coimbra e que desejava esquecer.
Continua…