– Madalena, que faz aqui? É quase pôr-do-sol!
Madalena desviou o olhar do lago para o fitar no irmão mais velho de Meca, que regressava a casa, no fim das aulas. Não dera pelo tempo passar, ficara ali absorta.
– Distraí-me, Lourenço, mas vou já para casa.
– Permita-me que a acompanhe, Madalena. Já não são horas para uma donzela andar sozinha na rua.
– Muito obrigada, Lourenço, se não for incómodo para si.
– É um grande prazer.
Acabaram de atravessar o Botânico até aos arcos do jardim, desceram a Rua Alexandre Herculano e depois, a avenida. Pelo caminho, Lourenço revelou-se mais expansivo, falou de Filosofia, de Botânica, de História, de Heráldica, revelando uma cultura vastíssima, que deslumbrou Madalena. Melómano como ela, adorava Wagner (Madalena preferia Mozart). Além disso, Lourenço era belo de uma beleza singular, rosto severo de linhas muito vincadas, olhos de um azul muito escuro (azul Mediterrâneo, pensou a rapariga, que só conhecia o mar dos postais ilustrados), cabelo castanho muito curto, elevada estatura e porte marcial. Lourenço tinha lido “Assim falava Zaratustra” sete vezes! Madalena ficou muito impressionada, porque ela não conseguira ler a obra nem uma única vez! Receou que ele a considerasse ignorante.
Quando chegaram à porta de casa de Madalena, Lourenço convidou-a para uma ida ao teatro, na noite seguinte, “A ceia dos Cardeais”, em cena no Teatro Avenida, aliás, em frente à casa onde a jovem vivia. O convite foi aceite e despediram-se.
Madalena subiu ao quarto muito animada; abriu o guarda-roupa e escolheu o vestido mais elegante que tinha para o dia seguinte: era verde-água e ficava muito bem com a esmeralda engastada em platina que trouxera para alguma ocasião especial. E Lourenço era mesmo alguém muito especial. A jovem estudante adormeceu feliz.
No outro dia, na faculdade, Meca, já sabedora do convite, mostrou-se tão entusiasmada como a amiga.
– Lena, tu impressionaste mesmo o meu irmão! Sabes que o Lourenço nunca mostrou interesse por rapariga alguma?
A jovem pôs-se muito encarnada e embaraçada.
– O teu irmão é extraordinário!
– Olha, outra! Vocês estão bem um para o outro!
– Chiu, Meca! Fala mais baixo, já estão ali a olhar para nós!
– Está bem, está bem, vão lá ao teatro, que eu fico muito contente por vós!
– Obrigada, mas é só uma ida ao teatro!
As duas estudantes embrenharam-se nas aulas e não falaram mais no assunto.
Nessa noite, Lourenço foi buscar Madalena a casa e juntos atravessaram a avenida e foram ao teatro. Só uma ida ao teatro? Claro que não! Formavam os dois um par elegante, ambos altos e esbeltos e, como lhe explicou Lourenço, eram ambos homozigóticos, porque tinham os olhos azuis. O que garantia que se tivessem filhos, todos teriam os olhos azuis. Era um desperdício o casamento de uma pessoa de olhos azuis ou verdes ou claros com outra de olhos castanhos, porque esta, mesmo que fosse heterozigótica, não garantia a transmissão da cor clara, pelo contrário, a tendência era para dominar a cor castanha. Madalena ficou boquiaberta, com o conhecimento e com o raciocínio.
Ainda alegou que para os antigos romanos o azul era uma cor inferior, porque era a dos olhos dos bárbaros, mas Lourenço quase que a fulminou com o seu olhar intenso e místico, alegando que, posteriormente, se tornara a cor da realeza na Europa. Paradoxal, retorquiu ainda Madalena, que, na sua ida a casa de Meca, vira pela porta entreaberta do quarto de Lourenço, uma águia representada num quadro da parede! Ele ficou um pouco atrapalhado, pela primeira vez e disse que mais tarde lhe explicaria o significado da águia, mas que de facto, Madalena marcara pontos, porque a águia era um símbolo do império romano e fora nele que a “sua” águia se inspirara.
Dali em diante, Lourenço foi sempre esperar Madalena à faculdade, donde seguiam para o Botânico; Meca acompanhava-os até lá, dizendo que era o pau de cabeleira para os arreliar, seguindo depois sozinha para casa. O par de namorados ficava horas no jardim. Outras vezes, iam ambos estudar para a biblioteca da Faculdade de Letras; era agradável, porque as secretárias eram duplas e podiam estudar lado a lado. E no final do dia, Lourenço levava-a a casa, com toda a sua polidez de perfeito cavalheiro.
Os dias, as semanas, os meses passavam a voar! Madalena sentia-se feliz como nunca na vida o fora! Os estudos eram intercalados com longos passeios no Botânico e no Penedo da Saudade, idas a concertos, ao teatro, ao cinema, sempre com a galante companhia de Lourenço e às vezes a de Meca, que se tornou como uma irmã que ela sempre desejara ter! Continuava a frequentar o lar daquela família, os convites para os almoços continuavam, sobretudo ao domingo. E depois, passava lá as tardes, sentindo-se muito bem acompanhada. Outras vezes, os pais de Meca organizavam passeios, à Figueira, à Curia, ao Luso e Madalena era sempre integrada, como se já fizesse parte da família de Lourenço. Eram tempos de doçura!
Certa manhã de sexta-feira, na faculdade, Meca chegou com um recado do irmão para Lena: Lourenço ia passar o fim-de-semana fora, na Lousã, com um grupo de amigos; mas, em simultâneo, a mãe dele convidava Madalena para passar o fim-de-semana com a família, para não se sentir sozinha.
– Que estranho, Meca, que amigos são esses?
– Não te rales, Lena, é uma espécie de sociedade secreta a que o Lourenço pertence. Têm lá uns rituais, mas ele não nos conta nada.
– Porquê?
– Não sei; no ano passado, fez com eles uma viagem, no Verão, à Alemanha Oriental, em peregrinação ao túmulo de Nietzsche. Descobriram um clube de amigos desse chato.
– Eu também acho um tipo aborrecido de ler.
– Uma seca! Mas o meu irmão adora!
Madalena estava desconsolada. Mas Meca persuadiu-a a ficar na casa do Penedo até domingo e para lá seguiram. A receção da família foi amável, como sempre e Madalena ficou instalada no quarto de Meca, que tinha duas camas alentejanas brancas.
As duas raparigas conversaram e riram bastante tempo antes de mergulharem no sono. Pelo menos, Meca adormeceu; a sua amiga escutava a sua respiração profunda. Mas Madalena não conseguia conciliar o sono: pensava em Lourenço, nos tais amigos, em Nietzsche, na ida à Alemanha, em Wagner, na águia…e que mais teria ele no quarto? Madalena nunca lá entrara, só vislumbrara as paredes ao passar no corredor. Mas agora sentia uma curiosidade aguda! Escutou um pouco mais a respiração de Meca para se certificar de que dormia profundamente. Depois, pé ante pé, descalça, foi até à porta do quarto e entreabriu-a: a casa estava mergulhada em escuridão e silêncio e já todos se tinham deitado havia bastante tempo. Em bicos de pés, sobre o tapete de Arraiolos que lhe abafava os passos, foi até ao quarto de Lourenço. Sentia o coração aos pulos e a consciência a pesar-lhe, mas a tentação foi mais forte. Entrou no quarto proibido, fechando a porta atrás de si. A águia estava na parede, num quadro encaixilhado, sobre uma papeleira. Livros e mais livros forravam as paredes. Lena aproximou-se da papeleira e abriu uma gaveta: continha um papel com frases em alemão que ela não compreendia; abriu outra: sentiu-se corar de vergonha, vendo uma fotografia dela própria! Abriu uma terceira gaveta: descobriu uma cruz suástica! Abriu ainda uma quarta gaveta: nova fotografia, desta vez do Fuhrer!
Com as mãos a tremer, fechou as gavetas todas e voltou para a cama, apavorada com a ideia de poder ser descoberta a sua indiscrição! Enfiou-se nos lençóis, mas só passado muito tempo conseguiu adormecer.
Os dias seguintes foram chuvosos e as duas amigas ficaram em casa todo o dia, estudando no quarto, donde apenas saíam para as refeições. No domingo à tarde, Madalena regressou a sua casa, uma vez que Lourenço iria regressar demasiado tarde.
Na segunda-feira, foi o regresso à rotina: Lourenço foi esperá-la à faculdade, mas não contou nada do fim-de-semana. Pelo contrário, abordou o tema do casamento: ele ia terminar a licenciatura em Medicina naquele ano letivo e parecia-lhe que seria a altura ideal para casar. Madalena ficou muito feliz! A verdade é que, não obstante as descobertas sinistras que fizera, a sua paixão por ele não diminuía, pelo contrário, sentia que aumentara, desejava-o mais do que nunca! Era algo de irracional, de animal!
Lourenço acompanhou-a a casa no final do dia, como de costume, conversando sobre aspetos práticos do casamento: a autorização do tutor e se ele não autorizasse, iam para tribunal, já tinha consultado Leonardo sobre isso, a cerimónia na Sé Velha, os convites, a família, o anel de noivado, a boda, etc. Madalena escutava-o, em êxtase!
Quando chegaram ao fundo da avenida, em frente à porta de casa dela, fez-lhe uma derradeira pergunta:
– És virgem?
– Não…
Houve uma pausa.
– Esquece-me, Lena, esquece-me!
A sua sombra, de elevada estatura e de porte militar, desapareceu rapidamente na noite.
Madalena sentiu o mundo a desabar, o chão a fugir-lhe dos pés, a felicidade a escapar-lhe por entre os dedos das mãos, o desespero na alma! Mais uma vez! Esquecê-lo? Como?
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No dia seguinte, de manhã cedo, uma multidão ao fundo da Rua Sá da Bandeira fazia um semicírculo junto à casa defronte do Teatro Avenida. Havia polícia, bombeiros, uma ambulância e muitos comentários dos mirones.
– Então, porque se atirou?
– Não se sabe.
– Se calhar, estava grávida…
– Pois, as raparigas de agora não têm moralidade nenhuma!
O corpo de Madalena jazia no chão, com os longos caracóis louros espalhados na rua; parecia estar a dormir, o rosto sereno, os olhos fechados, as faces exangues, só da boca vermelha escorria um fio de sangue…
Fim.