A velhinha vestida de negro e a oferta cultural em Trás-os-Montes

Depois de 45 anos de abril ainda há quem veja Trás-os-Montes pela imagem estereotipada da velhinha vestida de negro, onde tudo é breu, onde nada existe ou onde tudo é rude. Habitual é também confrontarem-nos com o constante quadro do relevo das fragas, numa descarada metáfora que parece sublimar a estéril aspereza do nosso sentir e do nosso espírito coletivo. Quando assim me falam, pensando que estão a elogiar ou a tocar o orgulho bacoco do autóctone acrítico, nunca deixo de alertar para a ignorância atrevida que em vez de me enaltecer me insulta.
É também fatal o meu repúdio quando em conversa com um qualquer “litoralista”, mesmo que amigo, lhe indico um ponto de interesse poisado num desses concelhos dos distritos de Bragança ou Vila Real e num insuportável instantâneo logo lhe ouço retorquir: “Eh pá, isso é muito longe!”.

Na verdade, sobre Trás-os-Montes gerou-se um conjunto de ideias fixas, mitificadas pela distância psicológica, mas também pela remota e desinteressante imagem da velhinha de buço forte, ornada de xaile rôto e lenço preto, hoje praticamente inexistente, mas que um significativo número de pessoas insiste em invocar e em graçola de caserna associar à região.

Mesmo depois de passados 45 anos sobre a rutura deste “grafismo salazarista”; mesmo depois de rasgado o Marão e de abertas duas autoestradas que são complementadas por uma já boa rede viária que nos aproxima de tudo e de todos, há qualquer coisa de antigo, folclorista e prazenteiro que persiste no imaginário de alguns “urbanos” quando se referem a Trás-os-Montes, imagem que em parte julgo ter sido veiculado ou mantido viva pelas imagens que ilustram a maior parte das peças das televisões portuguesas, quase todas com uma predileção doentia pela vertente pitoresca e antiquada de quem habita esta terra.
Com tantas coisas inovadoras, criativas e verdadeiramente interessantes a acontecerem em Trás-os-Montes, o que geralmente vemos explorado sobre nós nos 2 ou 3 minutos de informação e reportagem que integram os telejornais dos grandes canais televisivos é o velho agricultor que criou uma abóbora de 50 quilos, o rio Sabor que gelou em Gimonde, o “cinzelo” que cristalizou as árvores em Mirandela, os lobos que comeram as ovelhas em Vinhais…ou outros casos noticiados de semelhante interesse informativo.
É certo que a comunicação da imagem da região melhorou um pouco na “era do facebook” e da democratização da comunicação digital, mas é nos telejornais do meio-dia e da noite que se geraram e ainda continuam a gerar as imagens regionais que temos uns dos outros.

Apesar de estarmos a pouco mais de 4 horas de Lisboa e a 1 ou 2 horas do Porto, Trás-os-Montes continua a ficar muito longe e a ser um local encarado como remoto, onde só o irrisório acontece. Nada, portanto, de mais errado; nada, portanto, de mais elucidativo sobre a ignorância externa e generalizada que existe sobre a nossa terra e o nosso coletivo.
Pegando no exemplo da oferta cultural da região transmontana, pouca gente saberá o que por aqui se produz de verdadeiramente criativo e inovador e porventura muito poucos serão aqueles que concordarão comigo quando afirmo que essa oferta é significativa, diversificada e de muito boa qualidade. Na verdade, há bastante gente, incluindo um crescente número de jovens, a trabalhar no setor da oferta e da produção cultural na região, embora pouco se saiba sobre essa atividade, quer porque ela é omitida pelos grandes meios de comunicação social nacional, quer – o que é muito mais grave e triste -, porque essa atividade é silenciada pelos pequenos e dependentes meios da comunicação social local, sempre mais empenhados na pequena intriga política, no insólito pacóvio e provinciano do que em qualquer outro assunto de maior interesse social.

Efetivamente, ainda não há uma aposta na divulgação e na informação jornalística que nos dê a conhecer de forma constante as propostas e os projetos culturais que existem ou são fomentados na região.

Saberá você que só no segundo trimestre deste ano cerca de 50 eventos vão passar no Teatro de Vila Real? É verdade, a programação para os meses de abril a junho neste espaço cultural conta com cerca de 50 eventos nas várias artes performativas, entre programação própria e apoio a agentes culturais locais. Experimente espreitar o que aqui se passa e admire-se! Experimente fazer o mesmo com o Teatro Municipal de Bragança.
Ainda em Vila Real, poderia citar imensos exemplos da dinâmica e do vigor cultural desta cidade, entre os museus que se podem visitar, os concertos musicais, lançamentos editoriais ou exposições com várias temáticas a que é possível assistir. Mas permitam-me dar realce ao exemplo da atividade teatral pelo simples facto de aqui existirem quatro companhias residentes profissionais ou semiprofissionais, sendo que uma delas está ao nível do melhor que se faz no nosso país e, uma outra, constituída recentemente, surge brindando-nos com um elenco ainda muito jovem e um vigor qualitativo digno de realce. Que mais cidades do interior, de pequeno ou médio tamanho, se poderão gabar de semelhante proeza?!
E quanto a concertos ou produção musical? Bem, também aí poderíamos apontar dezenas de exemplos e de projetos, mas o que mais me comove é o caso de uma promotora independente de jovens com interesse zero pelo lucro, que atuando a partir de Bragança têm trazido até à nossa região uma enorme e eclética quantidade de nomes sonantes e de excelente qualidade da música que se faz por esse mundo fora. Há exemplos excepcionais e emocionantes da ação local que bem podiam ser utilizados para fortalecer a nossa persistência e a nossa autoestima.
É também esse o caso da aposta museológica de um pequeno concelho do distrito de Bragança.

Para quem diz que aqui não se passa nadinha é porque nunca visitou o concelho de Carrazeda de Ansiães, com pouco mais de 5.000 habitantes, mas onde podem ser visitadas sete estruturas museológicas da mais alta qualidade expositiva e pedagógica.

E que dizer de Miranda do Douro e de Mirandela e de Chaves, do Peso da Régua, de Macedo de Cavaleiros e de tantas outras localidades deste nosso rincão? Tantos e tantos exemplos que poderiam ser dados e que serviriam para nos orgulhar enquanto transmontanos e cidadãos de um território onde gostamos de viver e trabalhar.
Mas o que é importante frisar é que a o tal “grafismo” da velhinha vestida de negro já não existe! Já não existe há muito tempo! O que é importante frisar é que também aqui há urbanidade e modernidade. O que é importante celebrar, vozear, difundir, dizer, é que em Trás-os-Montes também se mostra e produz cultura ao mais alto nível, ainda se cria, ainda se inova e ainda se faz. E isso é importante para melhorarmos; é importante para mantermos a esperança e alimentarmos um maior ânimo na construção do futuro.

(Foto de capa: concerto dos Cave Story no Club de Vila Real)

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Arqueólogo/Historiador de profissão. Desenvolve a sua atividade no âmbito da investigação, gestão e preservação do Património Cultural. É autor de publicações de divulgação e de publicações com carácter científico. Divulgador. Exerce regularmente, por complemento da sua ação cultural, a atividade da escrita jornalística.

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