A rapidez com que mudei a então ingénua assunção é a rapidez com que o mundo e a nossa vida está a mudar. Se então considerava que o período de análise se seguiria à passagem da crise, agora penso que tudo muda tão rápido que a análise contínua se impõe. Mais do que esperar o amanhã e ver os dias passarem por nós, é este também o momento para pensar o que nos rodeia e para ruminar ideias… Afinal se estamos em quarentena até podemos dispor do tempo para reflexão que tantas vezes nos faltava na vida antes Covid-19, que continuamos teimosamente a apelidar de “vida normal”.
I. Crise
Começaria mesmo por aí, talvez a nossa vida não possa voltar ao que era, talvez seja mesmo impossível que tal aconteça. O que se está neste momento a viver a nível mundial deixa marcas, crava cicatrizes nas memórias das pessoas e da sua história de vida, mas também das comunidades e dos construtos políticos. A própria quarentena exerce mudanças na forma como nos relacionamos conosco, com os outros e com o contexto sociopolítico em que nos inserimos.
Mas talvez a nossa vida não deva voltar ao que era, um frenesi de roldanas movidas pela fome autofágica do capitalismo. Um modo de vida desestabilizador de tão estéril, focado no lucro, no ganho, de uma minoria empoleirada fora das ruas e das realidades vividas. Um modo de vida em série, compartimentado, que aparta o que foge do molde – a mulher, a pessoa racializada, a pessoa LGBTI+ e outros grupos que colocam em causa o funcionamento maquinista de uma sociedade que se quer produtora para prover matéria de troca e proveito à tal minoria empoleirada.
Até agora qualquer crise tem ajudado a reforçar, renovar, engordar o capitalismo. “A crise está inscrita no ADN do capitalismo”1. Mas esta crise está a atacar diretamente o carvão a que se move, as pessoas, está a foca-las no essencial, está a dar-lhes tempo para acordar e pensar, está a dar-lhes tempo para construir um sentimento alargado e elevado de fraternidade e proximidade. Esta crise permite repensar e refazer a forma como vivemos com inegável maior carinho pelo familiar, mas também pelo desconhecido e pelo planeta.
A linguagem bélica tem sido uma constante nos discursos, talvez a guerra que estamos a travar seja não só contra um vírus, mas contra o nosso modo de vida que permitiu o seu avanço galopante.
II. Guerra
Mas sobre a linguagem bélica, na década de 80 Susan Sontag2 escrevia sobre a apropriação da metáfora bélica pela medicina, em que “a doença é vista como invasão de organismos alienígenas aos quais o organismo responde com as suas próprias operações militares”, e as implicações que isso teve na forma de lidar com um outro vírus, o da SIDA, deslocando o foco de guerra do vírus, para o indivíduos seus portadores e, em última análise para os lugares (bairros gays, bordéis, vielas de drogados, África, …).
Ao longo da história o processo de “lidar” com epidemias e pandemias foi sempre o mesmo: o estigma desloca-se da doença para os indivíduos e dos indivíduos para os lugares. Sabemos, agora que vivemos algo nestes moldes, como o COVID-19 tem sido associado a pessoas chinesas e à China. Sabemos como Donald Trump ainda esta semana se referiu ao COVID-19 como o “vírus chinês”.
Este estigma que se vai construindo por imputar a responsabilidade de uma mal a um determinado grupo pode ser perigosamente reforçado pela metáfora bélica. A linguagem bélica contribui para erigir muralhas de fronteira com grupos mais afetados. Esta é uma análise que se exige ao minuto.
Uma outra interpretação de relação entre grupos pode vir do conceito de pandemia. “Pan” significa “tudo” e “demos” “povo”, a pandemia chega a todos o mundo e a todos os povos, o que implica que, mesmo com o encerrar e limitar de fronteiras, na verdade elas se esbatem. Agora as fronteiras não são as definidas nos mapas, o mundo é agora interconectado. Uma interpretação possível do que vivemos é ver a possibilidade do derrubar de muralhas, a possibilidade de aproximação e empatia com os diversos outros, a possibilidade de exponenciar o sentido de vivência como humanidade.
III. Controlo
Mesmo que certos limite e fronteiras se desvaneçam, temos lidado no quotidiano, para a maioria de nós como nunca antes, com limites bem reais.
São decretados isolamentos, afastamentos, quarentenas, confinamentos, em nome do controlo profilático. A biopoder de Foucault3 é aqui exercido de forma “exemplar”, o poder exercido sobre os corpos sociais a pretexto de um controlo de índole biológica.
Enquanto vamos cumprindo instruções, que devemos obviamente cumprir, podemos questionar: até que ponto é o biopoder democrático? Qual o limite?
A ânsia como muitas pessoas reclamaram o estado de emergência no país, faz-me questionar seriamente que exista uma reflexão feita sobre os limites para o biopoder. Reclamar de ânimo leve o estado de emergência é pedir pelo biopoder total, pelo controlo político total dos corpos sociais e biológicos, através do suspender do exercício de direitos, liberdades e garantias e do possível reforço dos poderes das autoridades administrativas civis, bem como o apoio às mesmas por parte das Forças Armadas.
Como única possibilidade democrática, mesmo abrindo portas ao exercício do biopoder devemos, ao abri-las, ter perfeitamente definidos quais os nossos limites, até onde permitimos que esse poder se estenda.
IV. Ninguém solta a mão de ninguém
Numa crise que toca a toda a gente, perante um vírus que não discrimina, ninguém solta a mão de ninguém, pode ser? Mesmo que uma mão metafórica, ninguém pode ficar para trás.
Momento de concertar prioridades, de nos localizarmos e, percebendo que neste momento não há quem não tenha voz, falar e opinar como nunca, dar uso à voz, dar um passo em frente e assumir responsabilidades na definição de “normal” no período pós Covid-19. A responsabilidade para que tudo fique bem também é nossa, com uma certeza: seremos diferentes.
- Arruza, C.; Bhattacharya, T.; Fraser, N. 2019. Feminismo para os 99%. Lisboa, Objectiva..
- Sontag, S. 1988. AIDS and its metaphors. New York, Farrar, Strauss and Giroux.
- Foucault, M. 1999 (1976). História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal.
Ativista. Formada em Antropologia. Deputada na Assembleia Municipal de Viseu pelo Bloco de Esquerda.