Vivo num umbral
Numa rua para além de limítrofe
Numa urbe suburbana
A rua onde moro nunca chegou a ser rua
Nem avenida, nem circular, nem coisa alguma
É só lugar por onde se passa
Por onde se entra
Por onde se sai
Onde nunca se fica.
Nunca se viu palmilhada lentamente
Pelas moles que acorrem às montras
Nem tão pouco pelas sandálias
Que vão pesando ao fim de tarde numa esplanada
É uma rua por onde se foge
Onde anda quem não quer ser visto
Onde nem quem mora para
É rua mais de motores do que de gente
É a sina das ruas que nascem depois do tempo
É a rua que nasceu no fim e no nada ficou
É a rua densamente despida
Pesadamente escura
Larga e estreita ao mesmo tempo
É a rua que desarma e desconforta
Mas sem ninguém para assistir à vergonha alheia
O mais triste desta rua
É que não tem vizinhas a olhar pelo canto da cortina
Ou vizinhos a pastar as tardes na soleira da porta
Ou cães dolentes ao sol
Ou gatos a gritar em janeiro
Ou crianças a levar sermões por brincarem na rua
E chegarem a casa depois do sol posto
O mal desta rua é não ter pedras para pontapear
Poças lamacentas onde chapinhar
E trevos de flor amarela para sugar
O mal desta rua é não ser a rua da minha infância que não existe.