Acreditar que podemos subtrair esta guerra infame da luta política no nosso país é um erro e uma ingenuidade. O objetivo da direita face ao consenso da condenação à invasão acabou também por produzir o consenso social em torno de uma guerra civilizacional, até ao último recurso, até à liquidação total, contra esse grande Outro que é a Rússia. Mais ainda, acabou por justificar a necessidade de maior investimento, tanto na NATO, quanto nas forças militares de cada Estado-membro da UE, com a Alemanha a anunciar um aumento no orçamento da defesa nacional na ordem dos 2% do PIB. No caso específico português esta continuação da guerra por outros meios faz-se de editorais em jornais de referência em que se faz uso declarado da mentira e de acusações infantis diante da denúncia das relações de empresários portugueses com oligarcas russos. Dado o clima de polarização não é, portanto, de espantar, que tenha chegado a vez da Iniciativa Liberal se levantar contra o BE e o PCP aproveitando a onda para repetir o enfadado bordão dos inimigos políticos da democracia.
Em comunicado publicado a 4 de março percebe-se bem o efeito pretendido ao se colocar a invasão da Ucrânia pela Rússia como uma invasão por “uma potência totalitária”. É o mesmo efeito performativo que se pretende com a equiparação de Putin a Hitler. Transformar Putin e a sua “potência totalitária” no objeto do nosso ódio incondicional leva-nos a transformar uma guerra que tem os seus motivos (obviamente injustificáveis!), circunstâncias e contextos específicos numa guerra, ela assim total, da civilização contra os bárbaros. Se o que está em causa é o “nosso modo de vida” então o preço a pagar pela paz no império – que se obtém com a injeção de recursos públicos na NATO e nos exércitos de cada país – é a mobilização de todas as tropas em todas as frentes (e os diversos cancelamentos culturais e académicos alinham apenas no tom da época), a criação e mistificação dos heróis de guerra (com Zelensky na linha da frente), e, claro, o apelo de sofá a que os ucranianos lutem até ao último resistente. Já definir o que é isso de totalitarismo e de um regime totalitário é algo que exige muita reflexão, espírito crítico, alguma fineza intelectual e, principalmente, a capacidade de fazermos distinções e não amolgarmos toda a diferença política, mesmo no que respeita aos mais diversos regimes políticos, numa condenação ética irrevogável e incondicional. Repare-se que Hannah Arendt, uma filósofa ideologicamente próxima do liberalismo clássico, gastou mais de 900 páginas para discorrer sobre o conceito e do seu livro As origens do totalitarismo nada nos autoriza a aplicar a definição ao regime autocrata, opressivo e ditatorial imposto pelo Kremlin. Não é a questão de o atual regime russo merecer o nosso mais absoluto repúdio, é o uso abusivo e injustificado de um conceito para a instrumentalização da opinião pública em torno das causas da direita nesta guerra.
Quanto à questão da democracia liberal, e, sim, burguesa, o que é central para a esquerda e o que a faz mover não é a rejeição das diversas liberdades e garantias civis, que, aliás, foram sendo arrancadas a ferro à custa do sangue, das lágrimas e do suor das classes trabalhadoras e dos seus povos, particularmente na(s) sua(s) luta(s) contra o(s) fascismo(s), mas, pelo contrário, a crítica radical daquilo que no sistema capitalista, enquadrado pelos demais regimes de classe, da classe burguesa, justamente impede que essas liberdades e garantias cheguem a todos e todas no espírito da sua realização plena e igualitária. Ao contrário da direita neoliberal, para a esquerda não há a liberdade dos vencedores do capitalismo diante da marginalização/exclusão dos vencidos. Mais do que a emancipação individual pela concorrência implacável no seio da apologia às virtudes do darwinismo social, em que aos mais aptos se concede o direito de esmagar quem está sob os seus pés ou de condená-lo ao olvido da história, é a emancipação coletiva da alienação produtiva, reprodutiva e consumista, e, claro, do egoísmo sem tréguas, que se faz mote e programa na(s) esquerda(s).
Escrever coisas como o Bloco de Esquerda e o PCP “detestam a União Europeia, o Erasmus, a troca pacífica…” é simplesmente passar por cima do facto de a esquerda não ser unívoca, como não o é a direita, e ter uma forte vocação e tradição internacionalista. Será fácil de entender que “detestar” esta UE (para alinhar no tom polarizado) não é o mesmo que detestar a possibilidade de uma outra UE. Da mesma forma que defender a saída de Portugal da NATO não é o mesmo estar “do lado da agressão expansionista de Putin e da pata ditatorial que ambiciona colocar sobre outros países livres”.
A NATO é o braço armado dos interesses dos seus aliados e não uma instituição de defesa do “nosso modo de vida”. Isso devia tornar-se claro ao passarmos em revista todas as intervenções militares que a NATO fez ao longo da sua existência em partes do mundo sem qualquer contiguidade territorial, por exemplo, com a Europa. Assim foi com a ativação do artigo 5º na guerra no Afeganistão, com o treino das tropas iraquianas, com as operações navais contra os piratas somalis e com a intervenção na Líbia. Este histórico bélico, fora da Europa, descontando as sangrentas intervenções no Kosovo e na Bósnia e Herzegovina, deviam ser suficientes para esclarecer a opinião pública que a NATO não é meramente defensiva, que, pelo contrário, é usada para colocar em marcha determinadas “agendas” correspondentes ao desígnio de construção e conservação de uma “ordem mundial” determinada militarmente a partir do Ocidente. A NATO antes de ser de defesa é de imposição bélica do nosso “modo de vida”. Na verdade, nem se trata de procurar, pela força, levar a liberdade aos outros povos, como numa missão evangelizadora bem alinhada com o dispositivo narrativo do neocolonialismo, mas de interesses materiais muito concretos, de negócios, de expansão e extração de capital. E, antes de mais, de forjar um sistema-mundo em que se fecha o espaço para cada povo, em liberdade, segundo a sua autodeterminação, escolher qual o melhor caminho para se autorrealizar e não consoante o primado do modelo único.
Quando a IL, no comunicado em causa, escreve um parágrafo deste tipo “Bloco de Esquerda e PCP são dois fantasmas da Guerra Fria que mantemos em Portugal, excrescências intelectuais do que foi o comunismo internacional, expansionista, imperialista, belicista e que espalhou a miséria pelo Mundo”, não podemos deixar de nos rirmos pela ironia e pelo jogo de espelhos em causa. Isto antes ainda de analisarmos se de facto a esquerda, particularmente o Bloco de Esquerda, que nasce de uma forte reivindicação anti-militarista, se revê nesta caricatura. Também é irónico ver um partido que rasga as vestes pela defesa da democracia e do liberalismo se demonstrar particularmente intolerante quanto à intervenção e simples existência das forças da esquerda no espaço público e político português. Mais um bocadinho de força e ainda pedem a ilegalização destes partidos.
Finalmente, porque a conversa já vai longa, ser anti-imperalista ou anti-imperialismos é não fazer depender a paz numa determinada região do mundo da guerra permanente noutras regiões. É não fazer depender a defesa do “nosso modo de vida” do ataque à autodeterminação dos outros povos com os seus respetivos “modos de vida”. É, principalmente, não fazer depender a existência de democracia nos nossos territórios da militarização das suas fronteiras, nem quanto mais, de condicionar as nossas liberdades da tirania da ordem mundial unipolar. E, sim, podemos e devemos condenar com a mesma veemência a invasão russa quanto a simples existência da NATO, porque a condição para a paz global passa incontornavelmente pelo fim dos imperialismos sejam este realizados em nome dos “nossos” ou em nome dos “outros”.
Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.