A discussão à esquerda sobre a melhor forma de combater a extrema-direita é um tema por si só e que já fez verter, e continuará a fazer verter, muitas páginas e a impulsionar muitas discussões. As teses a este respeito baseiam-se, no limite, em duas posições contrárias. Ou se ignora olimpicamente a extrema-direita ou se a combate visceralmente. Se se ignora olimpicamente corre-se o risco de a normalizar, se se a combate visceralmente corre-se o risco de polarizar a luta e, desta forma, contribuir, inadvertidamente, para o empolamento da extrema-direita. É claro que o combate à extrema-direita não se faz desta forma tão redutora, o que não significa que estas duas atitudes opostas não norteiem as diferentes estratégias da esquerda face à emergência da extrema-direita. Na verdade, para além desta polarização tática o conflito existencial com a extrema-direita faz-se também seguindo as coordenadas políticas daquilo que tomamos, por economia de linguagem, por combate objetivo e por combate subjetivo ao populismo de direita e ao fascismo. Da luta contra as estruturas que objetivamente criam o terreno fértil que alimenta a extrema-direita – como as desigualdades socioeconómicas que provocam não só ressentimento quanto ao “sistema”, como estas mesmas desigualdades aumentam a conflituosidade entre os mais pobres e a denominada “classe média” ou a classe dos remediados -; e da luta de índole cultural contra as formas de subjetivação social que tendem a naturalizar as desigualdades e a normalizar o egoísmo social. Portanto, para se combater a extrema-direita sem se cair em falsas ou precipitadas bifurcações talvez seja de notar que é possível, e desejável, combatê-la fazendo cruzar/intersetar a questão do “sistema” capitalista, e do respetivo establishment político, que cria as condições socioeconómicas para esse caldo de conflituosidade social da qual se nutre a extrema-direita, com a questão das subjetividades sociais necessárias à criação de outras expressões políticas de comunidade, de vida em comum. Quer dizer, para o combate à extrema-direita torna-se necessário não só combater a forma como estas forças políticas transformam em inimigos políticos quaisquer sujeitos que enfrentem as formas de exploração do capital, como se torna igualmente necessário, primeiro, dar visibilidade, e, de seguida, ajudar a promover a autonomia política dos sujeitos explorados e oprimidos contra o capital e a sua forma de organizar a vida social – com matizes que vão do liberalismo clássico, passando pelo neoliberalismo, até ao fascismo.
Não se trata apenas de denunciar o quanto a extrema-direita é parte integrante do sistema, e, simultânea e paradoxalmente, o quanto representa uma espécie de “excesso de sistema”, de sua hiperbolização, que impede a sua normalização, ou a sã e higiénica convivência, com estas forças dentro do quadro das democracias liberais constitucionalizadas. Impedir a “normalização” do Chega não é exatamente o mesmo que compactuar com o estado de coisas patente no regime constitucional da terceira república, mas não permitir que a luta contra o “sistema” implique o sacrifício das liberdades e garantias mínimas para que a esquerda, e as demais subjetividades políticas constituídas ou em devir, possam continuar a ter espaço, garantido por direito e por demais instituições que o tutelam e regulam, de expressão política.
Da mesma forma que reconhecer nos processos de alienação social e de reprodução da desigualdade económica o “ovo da serpente” não nos deve conduzir, “apenas”, à promoção de políticas públicas que contrariem estas tendências, como, nesse mesmo movimento, fazer reconhecer formas de subjetivação política que antagonizem a hegemonia neoliberal e a sua visão do mundo. Em suma, a luta contra a extrema-direita não se fará apenas tendo em conta a luta contra a sua “normalização” institucional por todos os meios estabelecidos pelo estado de direito democrático, como a sua capacidade de obstaculizar este processo de normalização dependerá sempre também do sucesso de novos sujeitos políticos transformarem os termos do debate sobre o futuro da nossa sociedade.
O caminho seguido pelo Bloco de Esquerda, logo após as eleições, no sentido de dar visibilidade às lutas de classe dos migrantes, nomeadamente no Alentejo, parece-me seguir nesse sentido em que não apenas se contraria a normalização da sobre-exploração do capital com o beneplácito das forças do centrão político e das instituições da república, quanto, nesse mesmo movimento, se dá voz e visibilidade a esses migrantes projetando-os enquanto sujeitos políticos em si mesmos capazes de transformar, pela mediação ideológica e institucional, a sua luta particular numa luta universal/geral contra os mecanismos repressivos que legitimam as mais diversas formas de expressão da extrema-direita.
Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.