O Estado como organizador e legitimador da desigualdade social

Senhora do Castelo - Mangualde
Senhora do Castelo – Mangualde

Quando a violência do Estado é estrutural ela define-se pelo seu relativo silêncio e relativa invisibilidade. Ela acontece, ou, ela dá-se, porque é assim que o poder organiza um determinado espaço social habitado por determinados grupos sociais. Quando nos referimos a este silêncio e a esta invisibilidade não queremos dizer que esta violência não rebente aqui ou acolá, ou que não existam dela sintomas, ou que ela não marca – como cicatrizes sociais – os corpos de quem é vítima desta violência estrutural – tanto ao nível psicológico como ao nível físico. Pelo contrário, ela entra pelos olhos adentro dos privilegiados – dos que estão de fora deste círculo de violência – e mesmo dos que se recusam a ver. Da parte de quem são as suas vítimas ela marca indelevelmente o seu passado, o seu presente e o seu futuro como membros de uma determinada comunidade política – esta violência estrutural é a negação em ato da democracia. 

Neste passo lembro-me de um membro da comunidade cigana em Mangualde que vive numa casa com telhado e paredes revestidas de Lusalite e que regularmente envia os seus exames médicos para a Câmara Municipal do concelho. O bairro está a matá-lo aos poucos e tudo se resolveria com a vontade política necessária para se fazer cumprir a Constituição e combater o racismo de um ponto de vista sistémico. Quando a rede Europeia Anti-pobreza nos vem dizer que os ciganos têm menos 18 anos de esperança média de vida dos que as não-ciganos, esta diferença não se pode explicar geneticamente e/ou biologicamente, mas pela forma como o racismo implica necessariamente uma determinada organização do espaço social que vota os racializados à exclusão, discriminação e indiferença pública – no limite que os vota à morte violenta às mãos do próprio Estado. 

Esta violência estrutural do Estado representa a perpetuação de um crime público à luz de qualquer entendimento possível sobre os direitos humanos e de qualquer representação sobre a democracia. Talvez que para resistir e combater esta violência do Estado seja necessário, primeiro que tudo, reconhecer o seu caráter criminal. E para reconhecer esta natureza criminal do Estado importará analisar a sua dinâmica, a sua historicidade em relação ao poder organizado, de uma forma externa ou transcendente em relação aos próprios limites do Estado de direito. Por isso é que a análise estrutural não coincide inteiramente com a normativa. É preciso compreender como o plano normativo contradiz na prática, ou entra em contradição, com aquelas que são as estruturas básicas da sociedade onde a classe, a raça, o género, a família… são determinantes. Para resistirmos e combatermos estas estruturas que são estruturas da desigualdade não há como não desconstruirmos e destituirmos – pela prática e pela disputa concetual – todas estas categorias sobre as quais se distribui, se legitima e se organiza a desigualdade. 

O Estado e o seu aparato normativo negam o racismo, a homofobia, o sexismo, a exploração… e, no entanto, elas definem o próprio Estado enquanto território socialmente partilhado. Se estas contradições constituem a própria vida social do Estado-nação é porque elas lhe são estruturais. À luz do plano normativo do Estado elas não se dizem, não se ouvem e não se veem, e, no entanto, elas são o próprio fundamento e razão de ser do Estado. O Estado é Estado porque a sua razão de ser é a desigualdade que tem por fundamento organizar. O Estado nunca pode ser neutro, não apenas porque o seu devir é produto de disputas ideológicas várias, mas, principalmente, porque o seu fundamento é legitimar e organizar a desigualdade social. Se o social não existisse não existiria Estado, nem, consequentemente, desigualdade organizada. Estado e sociedade são estruturalmente interdependentes, porque só há Estado porque existe o social, e só existe sociedade porque o Estado impõe a sua violência e as suas formas de produção da legitimidade. A “paz pública” é o preço a pagar para termos uma sociedade e não a “guerra de todos contra todos” permanente, e o Estado, enquanto “monopólio da violência”, é o garante desta mesma paz por meio do “uso da violência legítima”. 

Se na sociedade feudal o corpo político da desigualdade se fundava na estratificação social entre nobreza, clero e plebe, nas sociedades capitalistas demoliberais o corpo político da desigualdade é definido pela fluidez entre as estruturas de classe, de raça, de género e de família. Na verdade todas estas categorias como que transitam de modelo de sociedade para modelo de sociedade ainda que sobre dinâmicas diferentes, sentidos diferentes, formas diferentes de exploração entre classes, raças, géneros e famílias. A legitimação da desigualdade e da violência estatal contra a comunidade cigana assume-se aqui através dos discursos sobre a “subsidiodependência” (nomeadamente o RSI), da denúncia do trabalho informal (nomeadamente nas feiras e nos circuitos económicos da contrafação), da crítica cultural (nomeadamente da questão do casamento) e da denúncia de uma aventada incapacidade de integração do cigano na comunidade não-cigana (e não o inverso). 

Antes ainda da afirmação da extrema-direita com todo o seu folclore, a “fascização” do social ganha raízes e respaldo político através deste processo de legitimação da desigualdade por motivos de toda a ordem, mas que, antes de tudo, se sustentam nessas categorias um tanto ou quanto abstratas de raça, classe, género e família. Contrariamente às teses neoliberais avançadas por Margaret Thatcher, nem a sociedade pode ser a mera soma de indivíduos – e, a ser assim, a “sociedade” não existe enquanto unidade ontológica -, nem, quanto mais, o capitalismo pode “funcionar” sem estas “propriedades sociais” organizadas em grupos específicos. Se a sociedade sem classes representa o fim do capitalismo e o início do comunismo, esta não pode ser concebida sem se conceber a sociedade sem raças, ou sem género, ou sem família, e, no limite, a sociedade sem Estado e sem o próprio social. Que género de “sociedade” poderá ser esta a nós só nos cabe intuir, sabendo de antemão que cabe apenas ao próprio processo histórico realizá-la pela praxis. Uma praxis obviamente revolucionária.

Outros artigos deste autor >

Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.

Outros artigos deste autor >

Nesta rubrica se procurará reflectir – e provocar a reflexão – sobre os caminhos da filosofia e da produção teórica na esquerda radical, na esquerda igualitária e libertária, particularmente de tradição marxista, e, principalmente, com uma orientação emancipatória.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Related Posts
Ler Mais

VISTACURTA 2021: Vencedores

“O Nosso Reino”, de Luís Costa, venceu o prémio nacional da 12.ª edição do VISTACURTA – Festival de Curtas de Viseu, que terminou este sábado…
Ler Mais

Marcas de minha alma

Tem dias que ainda tenho dúvida Sobre para quem são Minhas músicas de amor Mas isso não importa…
Skip to content