Exercer a política é também cristalizá-la em torno de categorias, definir o próprio campo político através de relações e de todo o tipo de geometrias variáveis. O ato revolucionário é o que desfaz essas mesmas categorias, ou que se processa através dessa mesma perturbação das categorias. Definir o campo em que a política se processa é criar uma espécie de a priori que retira da política muitos dos que se recusam a aceitar os termos em que esta foi entretanto balizada, ou de que muitos desconhecem as subtilezas da sua linguagem, os seus maneirismos, os seus rituais.
As categorias sociológicas quando articuladas com este modo de se pensar e de se fazer política (de acordo com o paradigma) têm por efeito esvaziar a potência inerente à própria política, ao poder do imprevisto, da emancipação popular/cívica em relação às próprias categorizações político-policiais. Os pobres, conceituados, p. ex., enquanto classe ou estatuto socioeconómico, preenchem uma categoria secular – assim como os ricos. O problema é que os pobres são sistematicamente reduzidos a objetos da política. Eles são o “problema” político por excelência, diante dos quais esquerda e direita disputam pelas suas “soluções”. O “problema” dos pobres transforma-se no “problema” da cidade/polis e, por seu turno, este problema transforma-se num “problema” de ideologia, de disputa entre as oligarquias ideológicas que procuram tomar o poder. Para além de todos os atributos que enxameiam a constelação do ser pobre: o ser preguiçoso, ignorante, mal-educado, iletrado…, articula-se, em simultâneo e por reação, toda essa arquitetura da política que se faz poder, poder sobre os desfavorecidos em nome da reprodução da política conceituada enquanto paradigma, enquanto exercício do poder dos poucos sobre os muitos, ou dos privilegiados sobre os não privilegiados, ou dos mestres sobre os discípulos… Os pobres, enquanto categoria social, são-no sempre na condição de uma relação assimétrica que o paradigma reproduz. E a armadilha do “paradigma” é comum tanto à direita como à esquerda. Enquanto os pobres forem conceituados dentro do seu espírito – conceituados enquanto objetos e não sujeitos da política – qualquer pretensão progressista, e mesmo revolucionária, não mais fará do que arrastar o corpo das assimetrias que o sujeito político em curso prometeu contrariar.
E apesar de todas as reduções socioeconómicas que degradam a condição do pobre, que o reduzem a todas essas adjetivações socialmente reprováveis, os pobres sempre aparecem na cena política da burguesia não apenas como o seu escândalo, mas como a “turbamulta” que nunca conseguem controlar/domesticar por inteiro. Os pobres não são apenas os “excedentários” em relação às relações de produção ou às necessidades das cadeias de produção e consumo, representam também esse “excesso” de liberdade que nenhuma política consegue saturar por inteiro. Os pobres não significam apenas os limites da organização política vigente e do capitalismo, assinalam também os limites do próprio paradigma, do próprio exercício da política como determinação, como divisão social e hierárquica, como distribuição ranceriana dos lugares, das competências e das tarefas.
Toda a transformação da condição socioeconómica dos pobres será sempre contingente quando não aliada à transformação da condição política dos pobres. Não se tratará, tão só, de estender os direitos políticos ao antes designado “terceiro estado”, mas, ao invés, de os pobres – enquanto pobres – se constituírem enquanto sujeitos políticos por excelência.
Do lado dos pobres está a multitude, a multiplicação das formas de vida pela simples exponenciação do existir livre, da liberdade como pura expressão fáctica. Rancière descreve bem esta qualidade dos pobres que é o de não terem outra qualidade que não o da sua liberdade. E a liberdade não é uma propriedade nem um atributo de um qualquer ser ou personalidade, é um estado ou uma condição. Vive-se a liberdade contra toda a sobredeterminação paradigmática, contra toda a ideologia, contra toda a alienação económica e social. Esta vivência da liberdade como libertação é sinónimo de contrapoder e resistência.
Os pobres são, por condição, os sem-parte, os supranumerários, os “excedentários”, os que estão de fora (parcial ou totalmente) de todo o conjunto de fluxos entre o capital simbólico, as funções sociais e produtivas, as trocas comerciais e as relações de propriedade. Justamente por não tomarem parte da economia simbólica e real, do aparato ideológico e do aparelho burocrático, são constitutivamente livres, ou, reformulando, a sua liberdade reflete-se como liberdade de reproduzir a liberdade. Retomando a etimologia do conceito de proletário, Rancière recorda-nos que proletário é simplesmente aquele que reproduz a sua prole. Não o capital, o trabalho ou a ideologia, mas a comunidade dos que não possuem outros atributos e qualidades do que o poder de se multiplicarem, de reproduzirem os seus corpos contra o paradigma, contra a gestão paradigmática dos corpos.
Os pobres, enquanto sujeitos políticos, não querem caridade, nem solidariedade entre classes. Aliás, só rompendo com este quadro de captura da potência política dos marginalizados é que estes se podem constituir enquanto multitudes, enquanto reprodução criativa do ser e praxis permanentemente revolucionária. Só rompendo a reprodução capitalista das relações de produção e de propriedade é que os pobres podem superar o problema da sua alienação económica permanente. Não é uma luta pela acumulação do capital e/ou por outra função na hierarquia social – outro emprego, salário ou condição de classe – é mesmo a implosão do paradigma através da abolição da propriedade e a igualitarização radical das relações sociais contra a hierarquização sistemática.
Não avançaremos com uma conceção verdadeiramente emancipatória dos pobres, enquanto simultaneamente não combatermos politicamente duas culturas políticas que nos são dominantes. 1) Uma que menoriza o povo (ou, se o quisermos, essa entidade mítica que é o “cidadão médio”) neutralizando-o estrategicamente em nome da sua pretensa incapacidade de bem discernir. Retórica demonstrada à exaustão com o exemplo da escolha de evocar ou não o nome de Ventura, como se isso fosse condição suficiente para o eleitorado tomar a parte da extrema-direita. 2) Combatermos a cultura política que investe em certas categorias sociológicas a função de sujeitos revolucionários ou outros que tais – por exemplo, na categoria de trabalhador, ou de pobre, ou de racializado…
Se a primeira forma de cultura política carateriza o demiurgo, o sujeito que procura “moldar/instrumentalizar/operar” o povo submetendo-o aos seus fins particulares e à sua conceção privada do mundo. A segunda forma de cultura política é mais própria ao “anjo da história”, ao sujeito disposto a fazer “avançar” a história às expensas de todo o dano e sofrimento que esse progredir possa provocar. Na verdade estas duas culturas políticas, além de estarem uma para outra na menorização/rebaixamento da potência política dos pobres; são reflexo uma da outra na medida em que convertem os sujeitos políticos em sujeitos-outros, em sujeitos não-políticos, sujeitos estrangeiros ou à margem da sua própria história – isto quando não devidamente “ilustrados” pelas classes dirigentes (os demiurgos) ou as elites intelectuais (os profetas do “anjo da história”).