Como um autómato passava as mercadorias pelo scanner. Fraldas, pacotes de leite, preservativos, hambúrgueres, comida de plástico, comida de gato, agricultura biológica, lixo, souvenirs, toneladas e toneladas de desperdício… Pelas suas mãos muito longas e adelgaçadas passava toda a sociedade de consumo, os seus excessos, a sua insanidade, a produção massiva de plástico e de resíduos. Mas sempre era trabalho. Sobreviver sendo um panasca dos subúrbios não era tarefa fácil. Para além de todo o tipo de bullying que sofria, o mais degradante era ter de se esforçar por encobrir a sua verdadeira identidade de forma a evitar agressões. Com o tempo, e ao ritmo das pancadas, aprendeu a dissimular os trejeitos mais femininos, mesmo os mais subtis e até os mais ambíguos e dúbios. Cedo percebeu que a fronteira entre o masculino e o feminino podia ser mais ténue e arbitrária do que poderia conceber. Que a definição da masculinidade ou da feminilidade dependia, em última instância, dos critérios do agressor. A partir do momento em que a mais leve suspeita se instalasse os dispositivos de distanciamento, de distinção e de discriminação eram postos em andamento. No local de trabalho chegou a fingir desconhecer os mesmos rapazes com quem na noite anterior tinha tido um affair. Preocupava-se que as vítimas dos seus flirts não fossem pessoas discretas e que a qualquer momento pudessem aparecer na caixa do supermercado onde trabalhava e denunciá-lo. O mais ridículo é que todos no supermercado já sabiam que ele era gay, e, ainda assim, pior do que sê-lo era parecê-lo. Com o tempo o seu corpo começou a ganhar imunidade em relação a tudo aquilo que o poderia expor como um elemento estranho. Fora do seu círculo de intimidade e da estreiteza da sua vida privada Jonas chegava a ser agressivo e mesmo intolerante em relação a outros paneleiros que ele percebia como tendo manias de paneleiro. Via no orgulho e no deslumbramento dos seus pares como que a exaltação das suas próprias qualidades e dos seus desejos, logo, uma ameaça à sua integridade. Aquele rasto de medo perseguia-o até à mais tenebrosa noite dentro de si; contrariamente à vergonha o medo seguia-o para qualquer parte onde fosse. Quando levava algum marinheiro a sua casa fodia-lhe o cú com pavoneada virilidade e, não poucas vezes, alguma violência. Primeiro mandava-os despir enquanto assistia a tudo com um ar distante e maldoso. Depois pedia-lhes que se colocassem de quatro em cima na cama. Ele mesmo lhes encostava as mãos à parte superior da barra férrea da cama e, com eles já seguros, possuía-os com convicção e força indómita. Na virtude do sexo não havia amor nem sequer prazer, tudo se resumia a uma espécie de exorcização de toda aquela tensão que guardava dentro de si, da qual, por mais fodas que desse, verdadeiramente não se conseguia livrar.
Um dia, enquanto fazia o seu trabalho, percebeu que o seu ex-namorado Samuel era o próximo da fila na sua caixa do supermercado. Quando chegou a vez de Samuel, Jonas esboçou um sorridente e informal “Olá”. Os seus olhos brilhavam, tinha perdido as suas feições fechadas e sisudas, o seu semblante como que se abrira e todo ele era jouissance. Mas toda essa ebulição da felicidade rapidamente se dissipou, as nuvens cinzentas voltavam a ocupar o horizonte – Samuel ignorara-o sumariamente. Respondeu-lhe com uma saudação formal e uma expressão seca, como se o não conhecesse de lado nenhum e fosse um cliente como outro qualquer. No instante seguinte, apesar de perplexo, Jonas tranquilizou-se, pensou que Samuel quisesse ser discreto como ele próprio o era em relação às suas companhias noturnas.
Quando Samuel lhe estendeu o dinheiro para pagar, Jonas aproveitou esse gesto para subtilmente lhe tocar as pontas dos dedos, mas Samuel não reagiu, permaneceu impávido, como se nada fosse – não acusou estranheza, simplesmente fingiu que aquele toque não significava rigorosamente nada. Despediu-se desapaixonadamente e saiu porta fora.
Jonas passou o resto da semana em transe. Não conseguia arranjar respostas convincentes ao turbilhão de perguntas que choviam dentro da sua cabeça. Sentia-se ferido de morte, penava por uma outra oportunidade, ou, quem sabe, uma pequena revisão da história, pelo menos daquele episódio – acima de tudo desprezava-se a si próprio. É certo que ele mesmo tinha reagido da mesma forma que Samuel em relação aos seus encontros casuais e a quem o pudesse reconhecer como homossexual. Mas não podia conceber, com tudo aquilo que tinha passado com Samuel – pelo menos aquilo que ele achava que tinha passado com Samuel – que ele não tivesse sequer demonstrado o mais ínfimo e dissimulado sinal de afeto, de reconhecimento. Um “Olá! Estás bom?” “Há quanto tempo!”, uma coisa qualquer, banal, e que, ao olhar exterior, não mais poderia transparecer e induzir do que amizade. Jonas não admitia compreender as reservas de Samuel. Foi sob esse impulso, esse desejo de justiça e de vingança, sob a batuta desse ressentimento, que lhe ocorreu a inquietante ideia de o procurar. Talvez fosse aquela a sua janela de oportunidade, poder apanhá-lo em Lisboa antes que fosse tarde de mais e encostá-lo à parede. Deixou para trás os seus receios, que Samuel o voltasse a ignorar jurando não o conhecer de lado nenhum e denunciando um espetacular equívoco, ou que, não o ignorando, o chamasse à parte dizendo que aquela era uma má ideia e que não queria estar com Jonas, que o que passou passou, ficou lá atrás.
Contra todos os cenários possíveis acima de tudo precisava de uma resposta. Precisava de ficar em paz. Lembrou-se de pesquisar na net os eventos de arquitetura que estavam a decorrer em Lisboa naquele fim-de-semana. Assim que fez enter o motor de busca instantaneamente exibiu no cabeçalho o link para uma conferência internacional de arquitetura na Gulbenkian. Bingo! Aperaltou-se, vestiu aquelas calças de ganga muito justinhas, a camisola de malha azul com listras vermelhas, o imaculado casaco de cabedal, as sapatilhas brancas. Estava muito bonito, com um ar muito jovial e um aspeto alegre e íntegro, a laca que lhe arrepanhava o negro cabelo reluzente rapado dos lados. Jonas queria causar impressão, se fosse para sair derrotado ao menos que saísse com dignidade.
(Continua)