A força da obra – a primeira infância do trabalho

Podemos dizer que o primeiro contacto de Jonas com o trabalho foi concretizado pela mediação de outra pessoa. O trabalho, antes de ser uma experiência individual e mesmo coletiva, é uma vivência do mundo, uma dimensão relacionada com o nosso ser-no-mundo (in-der-Welt-sein). O trabalho desde sempre se constitui como um mundo.

Uma das memórias sensitivas mais vivas que Jonas guarda está relacionada com esse mundo, o mundo do trabalho. A mãe regressava do trabalho quando ele já dormia profundamente, noite profunda. Partilhavam os dois o mesmo quarto e dormiam na mesma cama. A mãe, ao penetrar silenciosamente nos lençóis da cama inevitavelmente tocava no franzino corpo de Jonas, perturbando o seu reconfortante e seráfico egoísmo. Por impulso Jonas repulsava a pele gelada da mãe, mas foi como se o corpo da sua mãe, indelevelmente marcado pelo trabalho, ao penetrar na pele de Jonas, também o convertesse a ele, enquanto criança, num sujeito involuntário do trabalho. A mãe pedia o seu calor procurando abraçá-lo, ao mesmo tempo que lhe explicava docemente a origem desse frio ou lhe contava uma estória, e até Jonas consentir em lhe ceder um pouco do seu corpo ficara selada a união da necessidade com o trabalho, isto é, da pobreza com a exploração. Pela comunhão do sofrimento uma outra forma de se agregarem gerações era assim firmada, uma aliança sociológica para além do sangue e da herança, para além da biologia e da contratualização privada.

Talvez Jonas naquele momento, com aquela maturidade, não pudesse ainda intuir que o peso da violência que a sua mãe carregava – essa agressão – refletia o seu futuro, que os olhos extintos e cansados de sua mãe eram já os seus, mas isso não nos desautoriza a deduzir que de algum modo Jonas não compreendesse que a pele fria da mãe e a sua carência afetiva eram o resultado desse papão chamado trabalho, não de qualquer tipo de trabalho, mas o trabalho para a conta de outro sujeito a que os adultos davam o pesado nome de patrão.

É claro que essa impressão traumática, esse choque suficientemente profundo para o acompanhar toda a sua vida não lhe surgira de imediato com a clarividência da pertença a uma qualquer condição de classe, mas fez deflagrar um processo de construção de uma consciência de classe, isto é, de uma pertença a uma certa comunidade de origem que se poderia transformar em comunidade de destino – ainda que só o trabalho do pensamento, da filosofia, pudesse realizar tal salto, tal passagem. De todo o modo, foi nessa noite fria, inverno inequívoco, que a impressiva experiência do mundo do trabalho se pôde principiar a constituir-se como ideia. No abraço maternal que sela a união geracional face à exploração e à pobreza é vinculado também a entrada para o mundo do trabalho, e, por seu turno, a compreensão do trabalho enquanto mundo – enquanto ontologia – é a condição epistémica necessária para uma praxis revolucionária, para que um sujeito se possa constituir em antagonista de uma realidade que o oprime. Se na infância da consciência o mundo do trabalho é sentido de uma forma alienada, externa, como algo a que nos subtemos acriticamente, com a mesma naturalidade de quem realiza as suas necessidades biológicas diárias, à medida que a consciência evolui do ponto de vista da classe ela descobre o mundo do trabalho como concretizada pela matéria política constitutiva que a ação pode e deve transformar. Não há revolução possível sem este apego à materialidade das relações de produção, tudo o que esteja desvinculado desta materialidade constitutiva não poder apresentar mais do que sintomas de burguesismo, ou, na linguagem infame da gíria policial do apparatchik: pequeno-burguesismo. A consciência de classe quando se realiza no materialismo ontológico do trabalho, realiza também o trânsito da necessidade como fatalismo para a necessidade como liberdade (Espinosa), como condição material para a libertação. Esse reino da necessidade – que não coincide com o reino do necessário, do fatalismo, do inexorável, do único e do inevitável – não é o do embrutecimento dos operários indiferenciados nem a maioridade dos empreendedores na era neoliberal, mas a condição necessária para a emancipação, para a concretização da vontade e dos desejos coletivos. Se o trabalho molda, transfigura e desfigura a vida, a vida só se realiza e se emancipa através do trabalho, ou, se o quisermos, através das suas relações materiais com o mundo do trabalho.

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Nesta rubrica se procurará reflectir – e provocar a reflexão – sobre os caminhos da filosofia e da produção teórica na esquerda radical, na esquerda igualitária e libertária, particularmente de tradição marxista, e, principalmente, com uma orientação emancipatória.

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Nasce em 1986 e habita nesse território geográfico e imaginário que é o Interior. Cresce em Viseu e faz a sua formação universitária na Covilhã, cresce tendo a Serra da Estrela como pano de fundo. As suas áreas de interesse académico são a filosofia, a política e a literatura. Actualmente está a terminar um doutoramento em filosofia.

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