A praxiologia da igualdade em Jacques Rancière | Parte2

(ver Parte I)

Parte II. A hipótese igualitária

Sob a divisão conceptual entre a polícia (la police) e a política (le politi que), e as lógicas divergentes e conflituantes entre si que as consubstanciam, abre-se o campo para uma outra distinção fundamental no campo político: decisivamente entre os reprodutores da lógica policial e os democratas, os praticantes da igualdade pela igualdade. Essa distinção é tão fundamental que não se encontra simplesmente plasmada na distribuição ideológica clássica entre a esquerda e a direita. Pelo contrário, a comunidade dos iguais é uma comunidade resgatada desta disputa pelo aparelho do Estado e da distribuição político-policial do comum.
A política não é o campo de disputa entre partes ideologicamente pré-constituídas – este é o campo do paradigma político-policial.

Nesse sentido, a política processa-se através de uma espécie de descolonização da ideologia, de libertação da inteligência relativamente ao horizonte da possibilidade política inscrita, p. ex., no programa dos partidos políticos. A política não é em Rancière a luta entre as partes pelo poder, pela sociedade e economia, é antes esse desenrolar-se de pequenos gestos diruptivos que atestam a apropriação do mundo por um outro sujeito político até aí imprevisto. Contra a determinação heterónoma da ideologia e a distribuição institucional das partes antagónicas – a alienação intelectual e a disputa pela hegemonia, pela relação de forças – Rancière responde com a autonomia do pensamento popular e a projeção de formas de comunidade possíveis, a autodeterminação intelectual e o ensaio de outras formas de distribuição do tempo, das competências e dos lugares. É essa distinção entre a comunidade igualitária e a desigualitária, que conduz a uma distribuição diferente do combate político. A luta política deixa de ser a luta pela distribuição do poder e pelas estruturas de dominação, para sintetizar a luta contra o paradigma político-policial, contra a reprodução de uma desigualdade de sistema.

Contra a leitura marxista da emancipação, não é o capitalismo e a sobredeterminação das infraestruturas económicas que estão na origem de todo o tipo de alienação, é o paradigma político-policial e a distribuição hierárquica da realidade sensível.

Essa é uma lição crucial por duas ordens de razão que se entrelaçam, uma conceptual e outra histórica. 1º) Porque a emancipação deixa de estar refém do influxo da determinação económica a montante – permitindo assim a inscrição da vontade. 2º) Porque não é possível superar o capitalismo em nome da “emancipação humana” sem superar as bases hierárquicas que o constituem socialmente – a disputa por outras soluções de distribuição económica, ou mesmo alterações políticas nas relações de produção, não implicam necessariamente resultados socialmente emancipatórios. É claro que as possibilidades da política, como gesto emancipatório de um povo, estão circunscritas às condições de existência desse povo, ao “estado da situação” (para nos apropriarmos da terminologia de Badiou), mas isso não serve, de todo, para justificar a limitação das suas possibilidades enquanto comunidade política. O povo apropria-se desse campo dos possíveis, não para neste encerrar todo o seu horizonte de possibilidades enquanto comunidade, mas para desenvolver no tempo todas as potencialidades que encontra em cada novo começo, em cada disrupção: a política é um ponto de partida, não um ponto de chegada. Por outro lado, não é possível superar-se a dominação sem se superar o padrão humano que institui e reproduz essa dominação.

Na verdade, a luta contra a dominação e a sua multiplicidade de formas é também uma luta pela natureza humana, pela transformação política – i. é, democrática e igualitária – da natureza humana.

Em contracorrente com o impulso acrítico de organizar a vida humana de acordo com uma totalidade orgânica e, a partir desta organização, dar fundamento a uma determinada forma de dominação, que, por seu turno, dá fundamento a todo o tipo de regime(s) político(s).
Aliás, em Rancière, o campo da tensão política não é o campo do debate e contenda pelas melhores formas de organização social, mas a destruição social das hierarquias, do próprio núcleo da reprodução desigualitária e seu padrão de funcionamento, daquilo que designamos aqui por paradigma político-policial. Tal combate justifica-se e legitima-se no interior da praxis revolucionária que vive do combate à reprodução do poder de dominação sem, por seu turno, nunca interiorizar as formas desigualitárias e hierárquicas que estão na base desse mesmo poder a que resiste. Uma política que vive da verificação da igualdade mas que a igualdade não lhe aparece como um telos, como seu desígnio e/ou objeto. Uma igualdade que vive sempre a montante da sua concretização estrutural e institucional. Aliás, a igualdade de princípio só se atualiza, justamente, contra estas mesmas estruturas e instituições. Por outro lado, a comunidade igualitária limita-se mutuamente, não pelas instituições e pelas suas estruturas, mas por sua própria dialética – a realização da igualdade de um encontra o seu limite na verificação da mesma igualdade radical no outro. Sintetizando, a comunidade dos iguais é a comunidade que vive da exponenciação intersubjetiva, dialética, da potência igualitária.
Ao fixar as comunidade políticas como constituídas sobre a ausência de todo o fundamento, Rancière quer ressaltar a distância insuperável entre a vida do(s) povo(s) e os pilares fundamentais que estruturam determinado tipo de regime. A vida livre dos povos, expressa nomeadamente sob o signo da literariedade ou da literaturidade (literalité no original, ou, na tradução anglo-saxónica, literarity), i. é, da democraticidade, oferece, através do próprio desenvolvimento e debate das suas contradições vivas, todo o tipo de resistência ao exercício da dominação através do paradigma político-policial – a literaturidade 1 é a chave concetual rancieriana que sintetiza o modo como a vida social interioriza o debate pelo seu devir comunitário, sem nunca se referir à exterioridade própria do paradigma político-policial, suspendendo a permanente intrusão ideológica das forças dominantes e sua hegemonização cultural.
Por outro lado, as classes que disputam pelo paradigma, simultaneamente disputam pelo povo ou por um povo, em suma, disputam o paradigma através do povo e o povo através do paradigma.

A dominação e as suas respetivas classes dominantes instituem-se enquanto tal por meio da reprodução do paradigma político-policial, definindo a contingência política e o horizonte de possibilidades através da gestão policial da ordem do sensível, da distribuição dos lugares e das tarefas. O paradigma político-policial é o paradigma da dominação, a forma como as classes dominantes se apropriam da potência igualitária dos povos, das suas forças vivas e da(s) sua(s) comunidade(s) livre(s).
A democracia como praxiologia da igualdade só se consegue realizar contra o paradigma político-policial e as suas diversas formas, tipologias e formulações. Mais ainda, a eficácia contra o paradigma político-policial mede-se pela capacidade de integrar todas estas formas de dominação.

Lutar contra o paradigma político-policial é simultaneamente lutar contra o capitalismo, o racismo, o patriarcalismo, o nacionalismo, o sexismo e o antropocentrismo.

Porque todas estas formas de dominação assentam e reenviam para a conservação do paradigma político-policial, também a eficácia da sua destruição assenta na eficácia da destruição do paradigma político-policial. A interdependência entre todas estas formas de dominação, uma interdependência de sistema, faz com que não seja possível superar totalmente uma ou mais destas formas de dominação sem superar a matriz que os suporta: o paradigma político-policial. Compreende-se o sentido desta imbricação quando temos em conta que o paradigma político-policial é um modo de se organizar os corpos no corpus social, de organizar a vida política, a vida do povo, de acordo com a gestão policial da vida comunitária.
Contudo, um dos pontos críticos que apontamos a Rancière é o de este fixar os limites da política dentro da disputa pelo paradigma político-policial, pelas estruturas político-policiais. Para Rancière os limites da liberdade e igualdade políticas são os limites proporcionados pelo paradigma político-policial; os limites da liberdade e da igualdade cívica, da emancipação, estão fixados na capacidade da polícia em definir o próprio horizonte de possibilidades daqueles que lhe resistem. Por outra parte, a raridade da política, o seu carácter acontecimental, aparece no nosso autor sistematicamente relacionada com esta limitação do excedente político aos limites das estruturas político-policiais. Os momentos políticos são momentos excecionais em que as possibilidades de existência do povo excedem o corpo político-policial. Na verdade, a liberdade e a igualdade como praxis democrática, como praxiologia da igualdade, vive desse excedente constitutivo em relação às estruturas político-policiais. Mas em Rancière os momentos políticos limitam-se a serem representados como os momentos através dos quais podemos compreender a transformação radical das sociedades, da contingência política, da ordem mundana. No esquema adotado por este, os momentos políticos nunca poderão ser estruturantes e duradouros porque estes, na verdade, não são momentos válidos em si e por si mesmos, não são horizontes de possibilidade, mas dão um fundamento temporal ao movimento revolucionário, disruptivo, que originou uma realidade nova, um novo facto social, uma nova contingência política – um novo regime, conjuntura e estado de coisas. Por outro lado, a prática revolucionária, desenrolando-se e expressando-se no tempo, apenas subsiste enquanto é capaz de se preservar no espaço-tempo contra a sua dissolução na ordem político-policial, no paradigma político-policial. É no jogo destas tensões alimentadas pelo próprio Rancière que fixaremos os limites do pensamento político rancieriano e o procuraremos confrontar positivamente, i. é, ensaiando outras possibilidades de desfecho para as suas premissas e argumentos.

É nosso empenho refletir sobre o pensamento político de Rancière, não para o conduzir ao seu limite aporético, mas para o converter num certo horizonte prático, para fazer deste uma espécie de prolegómenos a um programa político por excelência, à atenção de ativistas e de militantes contra a ordem dominante. A nossa principal preocupação é a de partindo dos instrumentos conceptuais rancierianos procurar dotá-los de uma pertinência prática que, no nosso entender, é o próprio Rancière que acaba por invalidar. A praxis democrática-revolucionária-igualitária transforma-se na luta contra o paradigma político-policial nas suas diversas formas instituídas – o paradigma antropocêntrico; o paradigma racista, o paradigma nacionalista, o paradigma patriarcalista…
Através do pensamento rancieriano esboçaremos a nossa própria hipótese igualitária para uma comunidade anti-desigualitária, anti-paradigma político-policial. A hipótese de uma comunidade que se desenvolve, que se emancipa, que se desenrola no tempo, tanto como resgate às tentativas de subsumir a vida política, i. é, a vida livre dos povos, no paradigma político-policial, como quanto esse desdobramento político da potência igualitária. A hipótese de uma comunidade dos iguais, uma comunidade anárquica por excelência, é a hipótese de uma comunidade livre da contenda ideológica pelo paradigma político-policial, e igualmente livre de se autocompreender por meio das estruturas político-policiais, por meio das premissas desigualitárias e da narrativa da dominação. (Continua)

(Texto de David Santos)

Outros artigos deste autor >

Nesta rubrica se procurará reflectir – e provocar a reflexão – sobre os caminhos da filosofia e da produção teórica na esquerda radical, na esquerda igualitária e libertária, particularmente de tradição marxista, e, principalmente, com uma orientação emancipatória.

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