«Uma ausência de liberdade confortável, acolchoada, sensata e democrática, sinal do progresso técnico prevalece na civilização industrial avançada. O que poderia ser, com efeito, mais racional do que a supressão da individualidade no quadro da mecanização de funções socialmente necessárias mas dolorosas? Ou do que a concentração de empresas individuais em companhias mais eficazes e produtivas; a regulação da livre concorrência entre sujeitos económicos desigualmente providos de meios; a edição de prerrogativas e de soberania nacionais que são obstáculos à organização internacional dos recursos? O facto de uma ordem tecnológica semelhante implicar também a coordenação política e intelectual talvez seja uma evolução menos agradável, mas bem vistas as coisas prometedora.»
MARCUSE, Herbert. 1964, O Homem Unidimensional, Lisboa, Letra Livre, 2011, p. 21.
O pensamento de Karl Marx foi construído tendo em mente os problemas que assolaram uma sociedade industrial em diversos aspectos distinta daquela onde hoje nos encontramos lançados, no entanto, tal não significa que o seu pensamento se tenha tornado obsoleto. A sua proposta foi construída dentro de um contexto social onde o carácter físico do trabalho, muito mais do que hoje, se mostrava como o principal pressuposto da produtividade. A sua abordagem à questão da tecnologia — a qual recebemos, sobretudo, por Lukács — foi feita neste sentido, da libertação progressiva do ser humano do fardo do trabalho. Com o potenciamento tecnológico da sociedade na segunda metade do séc. XX, criou-se um contexto existencial fisicamente menos dorial para a humanidade, sobretudo se comparado com aquele que caracterizava o quotidiano dos contemporâneos de Marx. A «racionalidade técnica», enquanto fundamento do desenvolvimento tecnológico, acabou por se estabelecer como a base normativa que delimita a estrutura de quase todos os serviços de bem estar social – desde a medicina ao acesso generalizado à informação, à cultura, e ao conhecimento –, tendo-se também tornado na principal responsável pela forma como o ser humano interpreta e interage com o «mundo» que o envolve.
Numa primeira leitura, parece que a visão marxista – que interpretou na tecnologia o instrumento necessário para a libertação humana – se encontra no caminho certo para a sua concretização social. Contudo, e no que diz respeito ao nosso bem estar mental, será que é também constatável um progresso em igual medida? Na experiência psicológica que cada um de nós hoje faz da sua própria existência, é possível compreender uma melhoria substancial da percepção que temos de nós próprios? Somos hoje mais felizes? Se não somos capazes de responder afirmativamente a estas questões, torna-se então muito importante levantar uma outra: se dispomos das condições técnicas que são necessárias para que cada um de nós tenha as suas necessidades fundamentais satisfeitas, porque razão ainda não nos sentimos realizados enquanto espécie? Para além disso, e por consequência da resposta a esta questão: Onde se poderá encontrar a raiz do desconforto existencial que hoje se faz sentir? Qual a origem deste «mal-estar» que Freud diagnosticou como a patologia que melhor caracteriza a vida no seio da cultura ocidental moderna?
Nos seus textos — nomeadamente n’A Sociedade do Cansaço (2010) e em Psicopolítica (2014) —, Byung-Chul Han aborda estas e outras questões similares a partir uma perspectiva fenomenológica. Segundo Han, o ser humano é hoje o produto de uma sociedade que o alienou de tal forma que, a própria demanda pela produtividade e consumo, característica das sociedades capitalistas, se encontra já interiorizada na concepção que o indivíduo faz de si mesmo. O poder opressor que canaliza a energia de cada um de nós para o trabalho, já não se encontra hoje materializado na figura de uma entidade externa, de uma classe social devidamente identificada como detentora do poder opressor exercido por via do controlo dos meios de produção. Tal não significa, contudo, que essa classe social não exista, ou que esse controlo já não se exerça; pelo contrário, tal quer dizer fundamentalmente que os interesses da burguesia encontraram na nossa relação com a tecnologia uma forma muito mais eficiente de se incorporar na mente de cada um de nós.
Com a disseminação massiva das tecnologias da informação, a fronteira entre o digital e o real tornou-se mais ténue. A utilização do smartphone como uma extensão de nosso «mundo», foi uma das responsáveis pela permeabilização dessa fronteira, permitindo que os interesses das classes sociais dominantes também se libertem das limitações inerentes às técnicas tradicionais pelas quais exerciam o seu poder. No «mundo» digitalizado, a distinção entre as relações profissionais e sociais foi sendo alienada, tendo-se reificado como o instrumentum de excelência para a incorporação da relação entre produção e consumo na mente dos indivíduos. Por via da cada vez mais profunda imersão humana no digital, o poder exercido pelas classes dominantes deixou de ser levado a cabo pelas vias tradicionais, aquelas que eram externas ao indivíduo; por intermédio do digital, os interesses da burguesia foram sendo progressivamente integrados como parte do «mundo da vida» que o próprio sujeito constrói. O seu poder é agora manifesto na concepção «mundo» que é criada pelo sujeito, aquele que a elas se subjuga voluntariamente quando aceita os termos e condições de utilização. Fazendo uso da terminologia proposta por Herbert Marcuse em 1964, a imersão da humanidade no digital constitui, hoje, o principal meio de disseminação do «pensamento unidimensional».
Marcuse é um dos principais herdeiros do pensamento marxista no decorrer do séc. XX, sendo a sua filosofia uma da principais inspirações dos movimentos revolucionários da esquerda que se demarcou no final dos anos 1960. Na construção da sua crítica à «racionalidade técnica», Marcuse cunhou o conceito «dessublimação repressiva» para designar o modo como as classes sociais dominantes exercem hoje o seu poder sobre as subordinadas, já não por via da opressão e supressão da sua liberdade mas, pelo contrário, por via da satisfação das suas necessidades individuais que, em última instância, por elas foram determinadas de antemão.
Aplicando a crítica marcuseana à sociedade tecnológica, torna-se hoje possível compreender como o «código técnico» que determina a estrutura — e a subsequente utilização — das principais plataformas digitais, se constitui ele mesmo como um instrumento de «dessublimação repressiva». A grande maioria das plataformas digitais que inevitavelmente já fazem parte do nosso quotidiano (desde as redes sociais aos sites institucionais dos quais hoje, mais que nunca, nos encontramos dependentes), encontra nas relações de produção e consumo o seu modelo estrutural, enviesado-o de modo a que se corresponda com os interesses económicos e políticos dominantes. Os social media apresentam-se como um do melhores exemplos da limitação da sua utilização; uma utilização que se procura padronizada, sempre sob o intuito de facilitar, antever, e controlar comportamentos sociais. O «pensamento unidimensional», incapaz de crítica, é hoje disseminado através desta padronização da utilização dos dispositivos técnicos. A forma como fornecemos e recebemos likes aquando da utilização destas plataformas, diz muito de nós, cria um «rasto», uma pegada digital que, mediante um processo hermenêutico, traça de nós um perfil. Daqui, e tal como se pôde já verificar aquando do Brexit e da eleição de Donald Trump, quem têm acesso a essa informação encontra-se a um passo de poder determinar os comportamentos dos utilizadores das plataformas digitais dos social media de acordo com os interesses dos actores políticos.
A humanidade, agora transformada num conjunto engrenagens da sociedade-máquina de produção de bens e conteúdos, encontra-se descontente, cansada, apática, perante as possibilidades que ainda se desenham no uso das tecnologias digitais. A possibilidade de uma existência verdadeiramente democrática, que marcou os primórdios da world wide web (e que hoje ainda guia o espírito da deep web), foi lentamente cedendo o seu espaço a um «panóptico digital». Na medida em que as necessidades de reconhecimento e aceitação no «mundo» digital se encontram satisfeitas, os seus utilizadores não irão procurar ou explorar mais os seus recursos, sujeitando-se a um tipo de utilização pré-determinada, «unidimensional», que se encontra inscrita sob o «código técnico», e que garante a perpetuação do poder das classes sociais dominantes.
Foi o desenvolvimento de tecnologias de interpretação de Big Data, o que criou as condições necessárias para construção deste sistema global de vigilância, muito mais eficiente e assustador do que aquele que foi inicialmente concebido por Bentham. Por via do «panóptico digital», as classes sociais dominantes têm hoje acesso, não apenas às manifestações físicas do comportamento de cada um de nós, mas aos nossos pensamentos, ambições, e desejos mais profundos. O «rasto digital» encontra-se disponível para ser interpretado pelos mais avançados algoritmos de processamento de dados, “despindo-nos” e descontextualizando-nos de acordo com os interesses de quem detém o poder de acesso a essa informação.
De todas as possibilidades que foram abertas pela revolução digital que marcou o final do séc. XX e a primeira década do séc XXI, foi a criação de um sistema global de vigilância aquela que se impôs. Não porque tenha sido esse o desejo dos seus utilizadores, mas porque as classes sociais dominantes encontraram nas plataformas digitais uma forma de instrumentalizar a «racionalidade técnica» que comanda o seu design para o seu próprio proveito. Colocar em questão a sociedade do «rasto» e da «reprodutibilidade» digitais a partir de uma perspectiva marxista mostra-se, por isso, como uma questão que deve ser colocada, e na qual se demonstra a actualidade e pertinência do pensamento marxista.
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