Que quem vive oprimido se rebele, ou, em sentido lato, procure contrariar e resistir a essa opressão, nunca pode ser visto como um problema – pelo menos para as forças políticas e para os ativistas sociais interessados na emancipação de todos e todas. Uma compreensão das dinâmicas sociais e das suas transformações baseada na luta, na resistência e na contradição, é o grau zero de toda a política – a questão da classe, da sua consciência, da sua organização e praxis vem depois. A questão não é a de justificar ou de legitimar a posteriori a resistência que um individuo ou o coletivo exercem sobre os que o procuram oprimir e/ou explorar pelas mais diversas formas e meios. Um trabalhador ou massa de trabalhadores que lutam por um salário melhor ou por uma jornada de trabalho menos extensa e intensa; uma mulher que se rebela contra a sua subalternização sistemática exercida por parte do marido, que se insurge contra o seu “papel” na distribuição das funções reprodutivas; um casal de namorados que reivindica o direito de seguirem as suas orientações sexuais e o seu modo de vida; um conjunto de sujeitos racializados que se organizam para fazerem a demonstração pública sobre as várias camadas e sentidos de opressão de que são vítimas. Todos estes episódios de fratura ou resistência em relação ao quadro da dominação, ao paradigma, como que se legitimam a si mesmos no próprio ato de rebelião ou revolta, dispensando qualquer quadro normativo mais amplo, quer este passe pela avaliação da “relação de forças” ou do estado de desenvolvimento do capitalismo e da luta de classes. Se todos estes episódios – circunscritos no tempo e no espaço – conseguem ou não superar o seu caráter “acontecimental” e precário é uma questão que a luta de classe deve dar resposta, e, note-se, radicalidade. Não há qualquer contradição entre todos estes atos de insurgência – e, por vezes, de insurreição – em relação ao paradigma, às formas estruturais e historicamente cumulativas de opressão, e o evoluir da luta de classes em direção à emancipação de todos e todas e à respetiva superação do capitalismo e da organização burguesa do mundo da vida. O que a consciência de classe e a praxis transformadora/revolucionária fornece a todo este aparato fragmentado de lutas e de causas é uma espécie de unidade de sentido e de destino. Porque da mesma forma que as diversas formas de opressão estão ligadas entre si pelo modo como articuladas dão corpo e/ou organismo a um mesmo esquematismo social, paradigma ou aparato estrutural de organização, de dominação, também as diversas condições de oprimido não deixam de reenviar e de testemunhar umas às outras a sua solidariedade de classe ou de condição existencial, visto serem sempre o resultado de construções sociais que visam produzir e reproduzir hierarquias e sistemas de exploração de uns grupos ou estratos humanos por outros.
Não se trata de qualquer forma de vitimização ou de politização da vítima, trata-se somente de compreender que é exatamente pela relação entre opressores e oprimidos – e da sua luta permanente – que o antagonismo social adquire força e vitalidade. O antagonismo social radicalizado na consciência de classe e na sua luta adquire a profundidade suficiente para se atrever a constituir-se, não só como resistência, mas como alternativa ao paradigma, ao capitalismo, à organização burguesa da vida social.
No tempo do Império (Negri e Hardt) o que se trata é de fazer com que a luta de classes como que vá ao encontro do antagonismo social e vice-versa, de fazer que as lutas dos oprimidos no contexto da globalização do Império se transformem em formas radicais de antagonismo social que, por seu turno, se possam constituir em alternativas também radicais à dominação global, ao Império – que sejam formas de alter-globalização, de contra-Império.
O único risco associado à polarização entre a conceção clássica da luta de classes e as derivas identitárias como politização de base é o seu reducionismo teórico e prático. Já que na verdade não há nenhuma luta de classe digna desse nome que não se constitua supra e infra-estruturalmente como luta contra o racismo, o patriarcado, o machismo, a homofobia, a exploração dos patrões… Da mesma forma que a luta dos racializados, da comunidade lgbt, das mulheres…, só adquire toda a radicalidade e universalidade num quadro de alternativa ao paradigma, à dominação, à hegemonia, ao modelo, ao Império. Na verdade, essa acusação de “identitarismo” não passa de um raciocínio falacioso que as forças emancipatórias não podem deixar sem resposta. Porque as políticas identitárias são justamente as políticas de direita e de extrema-direita, do neoliberalismo ao neofascismo, que tendem a confundir as dinâmicas sociais numa identidade pré-constituída, num sistema de valores ideologicamente disputado, na confusão entre movimento social e identidade – seja esta identidade racial, burguesa, patriarcal ou nacional. Da nossa parte o que precisamos é de mais e mais Multitude contra o Império, mais alternativa, mais produção do ser, mais diferença, mais subjetividade, mais rebelião e “desidentificação” contra os processos de disputa ideológica e de hegemonia e homogeneização económica, cultural e social do Império. Precisamos de tudo isto num quadro de disputa fundamentado nas relações de produção. De fazer penetrar a força e a vitalidade da multitude, de todas as formas de vida e de subjetividade em constituição permanente, na própria realidade da circulação, produção, reprodução e acumulação do capital. De fazer compreender que as lutas pela libertação e emancipação de todos e todas colidem com as “leis do capital” e com a exploração burguesa e que, por isso, é emergente fazer do antagonismo social a luta de classe e da luta de classe o antagonismo social. Onde há sujeitos oprimidos e realidade opressora há condições para o antagonismo social que a radicalidade na luta e na consciência de classe, de multitude, pode aprofundar até ao limite de se constituir como alternativa, como sujeito político, como comunidade por vir.