Aquando da eleição de Trump nos Estados Unidos, quando, enfim, foi aberta a caixa de pandora da extrema-direita e do populismo em geral, os analistas exibiram a sua confiança nas instituições, no sistema democrático de pesos e contrapesos (checks and balances). Face à ameaça da extrema-direita e do denominado populismo, a opinião pública esclarecida concentrou-se nas instituições democráticas maduras como forças de bloqueio ao ímpeto e ao poder das representações autoritárias e demagógicas. Se é verdade que nas democracias com instituições mais robustas estas têm, de facto, aplacado, pelo menos parcialmente, a força e o programa da extrema-direita no poder, parece-me ainda assim digno de nota que são justamente as forças populistas (forças que gravitam os extremos do espectro ideológico) que com maior eficiência e eficácia se têm apropriado do aparelho institucional e ideológico das democracias liberais contemporâneas. Na verdade, o populismo nasce justamente dessa reivindicação de uma democracia, de um poder popular, que a globalização neoliberal, a hegemonia do consenso, capturou, para, de seguida, o ter esvaziado, ao ponto de ter liquidado qualquer esperança, qualquer ilusão de um poder real, efetivo, dos povos. O consenso é a tradução política do fim da história.
”Neste sentido, os populistas não estão, pelo menos ao nível das aparências, contra a democracia, ao contrário, reclamam-se como os seus mais genuínos representantes.
Para estas forças políticas a sua missão é recuperar a “substância” da democracia para lá do seu aspeto meramente formal, meramente institucional, conjuntamente com a sua ritualização estéril, a sua burocratização, a sua lógica procedimental e o seu esvaziamento concetual.
O panorama de um lado e do outro do Atlântico é alarmante. As democracias liberais-parlamentares-burguesas, com o seu aparelho institucional, a sua separação de poderes, a sua imprensa livre, a sua opinião pública, os seus tribunais, polícias, etc., são, por definição, permeáveis às mais diversas propostas e modelos socioeconómicos, são permeáveis à hegemonia. As democracias, tais como as conhecemos no regime do consenso, no propalado fim da história, tanto podem ser mais ou menos neo-liberalizadas, como social-democratizadas, como nacional-popularizadas. Sintetizam formas de regime estrutural e conjunturalmente tão maleáveis que as transições de formas democráticas liberais para formas democráticas iliberais (Fareed Zakaria) podem ocorrer sem grandes sobressaltos, sem golpes de Estado ou revoluções.
”A lógica competitiva que subjaz à forma de regime hegemónica pode estender-se, sem complexos, sem questionamento, da extrema-esquerda à extrema-direita.
Por outro lado, o salto que marca a transição de um governo populista de direita para o fascismo ainda não ocorreu, ao menos na sua forma clássica. Para isso, a extrema-direita precisaria de preencher o aspeto formal das instituições que governa, de uma “substância”, isto é, de um corpo social, de um movimento, que liquidaria de vez todo o resíduo da democracia burguesa institucionalizada. Da mesma forma que os arcos tradicionais da governabilidade, os partidos do consenso e do neoliberalismo globalizante, moldaram os destinos dos nossos povos, também o populismo, onde este governa ou influencia o governo, acabará igualmente por determinar o futuro das comunidades que representa e das que pode vir a representar.
A nós, sociedade civil, caber-nos-á saber superar criticamente o círculo entre a eternização da forma-regime democrática liberal-parlamentar-burguesa, e a conformação (consensual), ou, ao contrário, a ativa participação (populista), na sua sublimação. Deste modo, caber-nos-ia abrir caminho para uma definição prática da democracia como convivência dessacralizada, tanto em respeito à idolatria pelas suas elites e da sacralidade dos seus textos, como em relação às suas pulsões totalizantes, aos seus sonhos primitivos de realização da totalidade na unidade.
Dessacralizar a democracia seria assim como exorcizá-la dos elementos que alienam os cidadãos em respeito a um poder que deviam sentir como expressão contínua da sua vontade.
A uma democracia das elites, das oligarquias, das instituições e da unidade, a uma democracia do sagrado, caberia responder e/ou complementar com uma democracia plebeia, da convivência igualitária, do respeito pela multiplicidade, pelo Outro, em suma, uma democracia do profano.