A mentira está para a vida privada de Arthur Fleck (Joker) tal como a ideologia está para a vida em sociedade.
Ao aperceber-se que toda a sua vida fora uma gigante mentira, o resultado de uma distorção sistemática da realidade, do modo como percecionava os outros e a si mesmo, Joker converteu a sua revolta num desespero niilista que apenas descobria regozijo, e, decisivamente, reconhecimento, na destruição desenfreada, no gozo da violência ilimitada e do caos. Para a destruição sistemática da vivência ideológica da sociedade só há duas respostas: a violência niilista de Joker ou a emancipação.
A revolta de Joker facilmente extrapola o nível da sua vida familiar, a sua dimensão privada, para se converter numa questão social. O problema é que a “questão social” nunca é encarada pelo personagem Joker como uma questão a ser superada também socialmente, pelo ato constituinte social que é simultaneamente um ato democrático e emancipatório. Os problemas sociais que dão o tom ao ambiente social em que Joker vive – e que principia com o prolongamento da greve na recolha do lixo – ambiente que lhe é igualmente hostil e degradante – o que, enfim, dota de uma dimensão universal o seu contexto particular – dissolvem-se com os problemas familiares (aquilo que constitui a singularidade da vida privada de Joker) para se consubstanciarem no desígnio da vingança pessoal de Joker. Se há uma dimensão política em Joker o seu substrato não é mais do que da ordem do patológico. A singularidade da vida de Joker só se torna num tema universal por via de uma resposta que frustra sempre qualquer possibilidade de dar um alcance universal à sua frustração. É como se a comunidade dos Jokers fosse a continuação dessa comunidade atomizada mas agora voltada para a destruição sistemática de todo o tipo de instituição – exceto a elevação da violência barbárica a uma forma de instituição.
Nesse sentido não há comunidade política que se constitua pelo movimento social de Joker, apenas o prolongamento dessa sequência infinitesimal de sujeitos atomizados ainda que agora antagónicos ao consenso, a toda a conformação à ordem social. É como se mesmo que invertendo o sentido da atomização social, da lógica neoliberal de individualização extrema, Joker não alterasse nada a esse fundo social. O projeto de Joker é tudo menos revolucionário.
A violência niilista desfaz a ideologia na medida em que para além de não se identificar com nenhuma ideia em particular que se cristalize numa “imagem do mundo” faz questão de o demonstrar destruindo toda a espécie de instituição da ideologia, todo o tipo de dominação patente ou latente da superestrutura (Marx). E para destruir a ideologia, a dominação da superestrutura, tem necessariamente de destruir a estrutura, a matéria da qual se compõe a realidade social: a propriedade privada e a totalidade das instituições que a preservam, a tutela e organizam – a comunicação social, a polícia, o poder político, os serviços municipais… Já a emancipação é o gesto que subtrai o sujeito da sociedade ideológica, dos aparelhos ideológicos (Althusser), do aparato ideológico, mas sem o precipício niilista que faz perder o desígnio coletivo de toda a emancipação. Os homens e as mulheres subtraídos das predeterminações ideológicas são os homens e as mulheres para quem a liberdade não encontra os seus limites na ratificação institucional, para quem o seu devir subjetivo, ou o seu poder constituinte, não encontra reflexo nas instituições, ou, só o encontra de forma irredutivelmente parcelar – porque a emancipação é sinónimo de produção de um excesso de ser que nenhuma organização do poder temporal, que nenhuma forma de institucionalização, é capaz de assimilar. A emancipação sintetiza um gesto de rutura com as predeterminações dos jogos de poder pela dominação ideológica, pela dominação das crenças políticas básicas dos membros de uma determinada comunidade política, pela distribuição ideológica da escolha na era da democracia partidária e parlamentar; pela formação da opinião pública através da gestão do consenso operada pelos meios de comunicação e do seu séquito de opinion makers de esquerda e de direita.
A arte é uma forma do homem e da mulher se subtraírem ou transcenderem a ideologia, talvez a filosofia possa ser outra. No livro O mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual Jacques Rancière, lendo Joseph Jacotot, reproduz a imagem do homem emancipado como o poeta. Como aquele que encontra pretexto em tudo para encetar novas relações com as coisas do mundo, militantemente predisposto a começar de novo, isto é, a retomar uma relação originária com o mundo ante a ideologia; a fazer da possibilidade política uma possibilidade arrancada à conjuntura das predeterminações ideológicas. E o que é a poesia senão a suspensão das relações dos meios e dos fins, da suspensão do sentido em nome da aisthesis (Agamben)?
Esse gesto de suspensão de toda a finalidade, de toda a narrativa política, é o primeiro passo para enfrentarmos a distribuição ideológica da realidade. A ideologia é essencialmente narrativa, mas uma narrativa de um tipo especial. Uma narrativa que habita a vida das pessoas moldando os seus hábitos. O comportamento das pessoas compõe a narrativa, reprodu-la e replica-a. A narrativa da ideologia é uma narrativa aberta ao poder, suficientemente plástica aos interesses do poder – é como se fosse uma espécie de prisão de grades maleáveis. Parafraseando Wittgenstein nós estamos presos na ideologia como moscas numa garrafa, cabe-nos ajudar a mosca a encontrar a saída. A ideologia é uma meta-narrativa, esta fornece-nos o conjunto de crenças básicas que estruturarão a nossa compreensão do mundo – esta determina essa mesma compreensão.
A violenta transição do sujeito ideológico para o sujeito emancipado é o de arrancar-se às opiniões pré-fabricadas, ao “pronto-a-vestir” das conceções políticas, em que as estruturas reenviam para a superestruturas e vice-versa compondo um circuito fechado de ideologia que compõe um determinado mundo, uma determinada “paisagem do possível” (Rancière). A retoma contemporânea do sujeito e da subjetividade por parte da tradição da teoria crítica, vis-à-vis a determinação das estruturas e da ideologia, inscreve-se, ainda que de forma por vezes incipiente, na compreensão da política como a libertação das estruturas, como o ato de transgressão dessas estruturas. O sujeito político como sujeito emancipado – e não como sujeito ideológico habitando a configuração da distribuição do poder, das partes sociais, os limites da superestruturação da ideologia – é aquele que ao movimentar-se como sujeito transgride. Transgride a distribuição consensual das partes que a cada um cabe na figura de um qualquer “papel social”. Todo o sujeito que abale a estruturação social – particularmente no que nesta há de hierárquico e/ou desigualitário – é facilmente alvo da estranheza que se pode transformar em perturbação e finalmente em ódio. Um ódio primitivo àquilo que podemos entender contingente e ideologicamente como a ordem instituída. Todo o sujeito que se pretenda movimentar transgredindo as estruturas é um ex-cêntrico, alguém que não se insere no nosso habitat, um alvo a abater.