A pastorícia exige “muito trabalho para pouco retorno e se não fossem os subsídios agrícolas duvido que existisse um único pastor ativo, assim como no resto da agricultura”

Pastorícia no Interior – entrevista com Ana Teresa Matos, recente pastora da Serra da Estrela
Imagem de Dinh Khoi Nguyen por Pixabay

Ana Teresa Matos tem 32 anos e é de Vila Franca do Rosário, uma aldeia do concelho de Mafra. Licenciada em Biologia, com uma pós-graduação em Ecologia e Gestão Ambiental e Mestre em Engenharia Florestal, trabalhou como técnica florestal a realizar cadastro e planos de gestão florestal, e também no Recenseamento Agrícola 2019 como entrevistadora.

 

Partilhou com o Interior do Avesso a decisão de se dedicar à pastorícia na Serra da Estrela, juntamente com o seu marido André, numa entrevista onde também aborda temas como o ambiente, o território, a produção e comercialização de produtos locais: 

Porque é que decidiste ser pastora? Quais as vantagens?

Vim com o André para a Serra da Estrela em 2021 com a ideia de realizar um projeto que conciliasse a recuperação ambiental com a agricultura e preservação do património. Tínhamos comprado um terreno para tal e decidimos começar pelo rebanho de ovelhas Serra da Estrela para gerir as pastagens há muito abandonadas, que se encontravam cheias de mato. As vantagens de ser pastora são o contacto com os animais, a vida na natureza remota, e a paz. Na altura em que tomei esta decisão existiam apoios municipais para a pastorícia, o que também pesou na decisão de começar por aqui. As ovelhas estão a possibilitar a nossa vida na quinta, de modo frugal, mas permite-nos ir desenvolvendo o resto do projeto aos poucos numa zona muito remota onde não existem muitas oportunidades de trabalho. Além de que isto nos possibilita ajudar a preservar a ovelha da raça Bordaleira, uma raça típica da região da Serra da Estrela, portanto uma raça autóctone, mais adaptada ao ambiente local e que nos últimos anos tem vindo a ser gradualmente substituída por outras raças mais produtivas alóctones. E assim também enveredar pela produção artesanal de queijo da Serra da Estrela, permitindo-nos apoiar a preservar um estilo de vida e uma cultura que está cada vez mais a cair em desuso e a desaparecer, contribuindo para o nosso objetivo de preservação do património, mencionado mais acima.

 

Atualmente, quais os maiores desafios que enfrentas enquanto pastora?

É uma vida difícil, não há dias de férias e as ovelhas são animais bastante dependentes de cuidados. Na altura não sabia, mas são bastante difíceis de manter em vedações elétricas, o que dificulta o dia a dia. Pretendiamos fazer pastoreio rotativo em vedações elétricas temporárias mas não é possível pois elas não respeitam as vedações. Assim, temos algumas vedações mais bem feitas com rede, mas as fugas são constantes e também saímos com elas para as levar a pastos mais longe. Depois é preciso fazer camas, tirar estrumes, encher manjedouras, curar ovelhas doentes, separar borregos, fazer sementeiras e colheitas e reparar vedações constantemente. No sistema tradicional aqui na Serra, a pastorícia fazia-se em percurso, ou seja, o pastor todos os dias saía com elas para locais diferentes ao longo do ano, dando tempo às pastagens para se regenerarem. Contudo este trabalho era feito em família, com rotação de quem levava o gado e pessoas que faziam as restantes tarefas na quinta e domésticas. Hoje esta dinâmica familiar é rara, os pastores que resistem não têm dias de descanso e trabalham 12h ou mais por dia. Muitos têm algum apoio de familiares e amigos. Existem situações em que são empregados pastores para gerir um rebanho, mas cada vez menos, dado que muitas vezes recebem menos do que o ordenado mínimo por um trabalho escravo. São poucas as situações que conheço de pastores empregados com condições. Normalmente, acontece em grandes projetos com outras atividades mais lucrativas associadas (ex: turismo). Resumindo, é muito trabalho para pouco retorno e se não fossem os subsídios agrícolas duvido que existisse um único pastor ativo, assim como no resto da agricultura. Os produtos não pagam o custo de produção. Mas isto é uma realidade tanto na pequena agricultura como na de grande escala, que também recebe apoios agrícolas. É necessário para o consumidor conseguir adquirir comida mais barata, de outra forma os preços seriam muito mais altos. O que me leva a outra dificuldade do pastor que é a comercialização dos produtos: o borrego é muito mal pago. Nós certificamos e, assim, conseguimos um valor um pouco mais alto, mas ainda assim a cadeia de distribuição fica com a maior fatia, apesar de ter menos trabalho. No queijo, a burocracia do Parque Natural está a dificultar a criação de uma queijaria certificada, pelo que não comercializamos ainda, fazemos só para casa. Há também a questão dos incêndios: em 2022, ardeu toda a quinta excepto os animais, casa de apoio e ovil. Foram meses muito complicados até voltar a haver pasto. Na altura o André estava fora e tive de sair com elas todos os dias durante meses, incluindo no Inverno, porque não havia pasto na quinta. Valeram-nos donativos em palha e feno para os dias iniciais após o fogo e, mais tarde, para os dias de temporal; bem como a disponibilização de pastagens por parte de amigos.

 

Achas que a pastorícia tem futuro no Interior do país?

Depende das políticas adotadas. Estamos muito dependentes, tem que se manter os subsídios, mas a nova Política Agrícola Comum (PAC) não está ajudar, com um grande acréscimo de burocracia que dificulta o acesso a muitas medidas, reduzindo o valor anual que recebemos. Há também atrasos e reduções inesperadas que têm causado polémica. No fundo, acho que o setor da pastorícia está dependente do futuro das políticas da PAC e dos governos dos próximos anos.

 

Que medidas consideras que deviam ser implementadas para apoiar a pastorícia e os pastores?

Continuação e melhoria dos apoios; pagamento por serviços de ecossistema; criação de gabinetes de extensão rural; criação de ligações entre estudantes de agronomia e os pastores, para trabalharem nas quintas e desta forma dar apoio aos pastores; contratação de pastores por alguma entidade local, por exemplo municípios, ICNF, Juntas de Freguesia, (contratariam o pastor e o seu rebanho ou se essas entidades tivessem um rebanho próprio, contratariam um/vários  pastores para o conduzir e empregariam esse esforço para a utilização do pastoreio como forma de ajudar a manter limpos os terrenos das juntas, terrenos camarário ou baldios). 

Criação de meios de escoamento dos produtos de origem pastoril (Queijo, Borrego/Cabrito, Lã, etc.) que permitisse uma cadeia de distribuição mais pequena (a nível local e regional), mais justa e sempre que possível mais a favor da relação direta do produtor/produto – consumidor, através da redução da burocracia, mais incentivos à criação de cooperativas locais e mercados regionais/tradicionais. Acho que, e apesar de parecer agora um pouco deslocado do assunto, as medidas dos governos de forma a melhorar os rendimentos das pessoas seriam uma grande ajuda para isto e para a agricultura no geral. Porque, infelizmente, as pessoas com os salários que têm preferem comprar produtos de pior qualidade, mas que não lhes pesem tanto no bolso ao final do mês. Ou seja, infelizmente, o consumidor é levado a escolher entre a relação qualidade/preço. Claro que este tipo de produtos locais que deveriam ser mais valorizados pela sua qualidade de produção menos intensiva e menos industrial acabam por sofrer também indiretamente com as políticas de baixos salários praticadas no país, descurando a valorização de produtos que podem e devem ser valorizados.

 

Que outras medidas deviam ser implementadas no Interior, por exemplo para cativar jovens e melhorar as condições de vida da população residente?

Acho que apoiar a criação de emprego que mantenha as pessoas a longo prazo no território seria a melhor e principal medida para cativar os jovens e as pessoas no geral a vir para o Interior, assim como para manter as que cá estão. Além disso, não apostar unicamente em atividades extrativistas (como a mineração) que funcionam durante algum tempo e depois desaparecem quando o recurso está esgotado – levam a riqueza e deixam o território pior do que estava e com mais problemas ambientais por resolver. 

Realizar e apoiar uma gestão florestal que pare o ciclo repetitivo de incêndios (ex: reativação dos guardas florestais, aposta nos incentivos para a plantação de florestas de espécies autóctones), seria uma medida importante para quebrar a lógica de abandono rural que se segue de incêndios e, depois, mais abandono. Porque as pessoas vêem as suas quintas e casas a serem destruídas e os sucessivos governos a prometer apoios e a não cumprir. Muitas pessoas já não têm vontade nem esperança para continuar o seu trabalho e acabam por abandonar o território.

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