A década de 90 do século passado, no âmbito do património cultural, nomeadamente do património arqueológico, fica marcada pelo achado e reconhecimento da importância das gravuras de arte rupestre do Vale do Côa. O governo do então primeiro-ministro, Aníbal Cavaco Silva (PPD/PSD), pouca importância deu ao achado arqueológico que, caso a construção da barragem de Foz Côa fosse adiante, se perderia irremediavelmente. Nunca o património cultural português serviu de mote a uma campanha eleitoral, tornando-se um elemento chave da campanha, e que vai contribuir seguramente para a eleição de António Guterres (PS) como primeiro-ministro em 1995, que se compromete com a salvaguarda das gravuras e o cancelamento das obras da barragem.
A salvaguarda das gravuras de arte rupestre do Vale do Côa representa a esperança num Portugal melhor, que respeita e preserva o seu património. Representa, ainda, o primeiro confronto entre a preservação de um bem cultural, um bem comum de toda a comunidade, contra a preservação dos “bens para alguns”. Pela primeira vez em Portugal, a decisão de preservar o património cultural ganha expressão nacional e internacional e impede-se a construção de uma barragem. Foi a primeira e última vez que o património ganhou força face à potente EDP, à altura propriedade do Estado Português e hoje propriedade do Estado Chinês.
A cegueira ideológica do governo de Cavaco Silva, juntamente com a falta de noção e sentido de Estado na área da cultura e do património, não correspondia à visão Nacional. Em Vila Nova de Foz Côa, um movimento juvenil, que surge na Escola Secundária, ganha expressão nacional e internacional, sendo apoiados, desde logo, pelos jovens de todo o país e associações não governamentais de âmbito internacional. É este movimento juvenil que vai contribuir para a preservação e salvaguarda daquele que é o maior achado arqueológico da década de 90, que vai alterar o paradigma e o entendimento sobre o Paleolítico Superior.
Em 1998, no processo mais rápido de classificação de um bem cultural como Património da Humanidade, a UNESCO reconhece e atribui a dimensão internacional da importância das gravuras de arte rupestre do Vale do Côa e a necessidade da sua preservação no local onde se encontram. Ainda neste contexto, o mesmo organismo internacional prologa em 2010 a classificação ao sítio de arte rupestre de Siega Verde (Espanha). O vale do Côa, segundo a legislação em vigor, é ainda também reconhecido como Monumento Nacional.
Estamos, portanto, diante de uma área geográfica considerável que representa um «exemplo único das primeiras manifestações da criação simbólica humana e dos primórdios do desenvolvimento cultural» (UNESCO, 2010) e que a sua análise de conjunto, incluindo Siega Verde, contribuem para um melhor conhecimento «sobre a vida social, económica e espiritual dos nossos primeiros antepassados» (UNESCO, 2010). Em termos legais, o conjunto patrimonial, além de ser Património Mundial, é considerado Monumento Nacional, estando abrangido pelos normativos internacionais que o Estado Português subescreve, bem como por legislação nacional, que o protege.
O retrocesso cultural e civilizacional
No sentido de proteger, salvaguardar e estudar o património arqueológico do vale do Côa, foi criado o Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC), posteriormente o Museu do Côa, estando ambos, atualmente, sob gestão da Fundação Côa Parque, F.P (FCP). A defesa do património cultural, bem como a sua preservação, não se fica unicamente pela classificação. É necessário investimento público em infraestruturas e em recurso humanos que possam garantir a salvaguarda daquele que é um património comum. Mas nem sempre assim foi. Recordemos os anos de má memória da governação da direita neoliberal, com Pedro Passos Coelho (PPD/PSD), enquanto primeiro-ministro, e o “irrevogável” Paulo Portas (CDS/PP), como vice-primeiro-ministro, que propuseram a extinção da Fundação Côa Parque, meses após a sua constituição, e sem proposta alternativa para a gestão do PAVC e do Museu do Côa. Foram anos de desinvestimento em muitas áreas, mas sobretudo na cultura. Em 2015, assiste-se à mudança de um ciclo de empobrecimento, o que permite às instituições, neste caso concreto, a FCP dar continuidade ao seu trabalho no âmbito da salvaguarda patrimonial.
O vandalismo de qualquer uma das rochas com gravuras de arte rupestre é per se um crime contra o património. No entanto, o vandalismo da rocha do “Homem da Ribeira de Piscos” é demonstrativo do quanto ainda falta fazer na área da educação patrimonial. As representações antropomórficas são raras no vale do Côa, como nos refere A. Martinho Batista: «surgem agora também as primeiras e raras representações de humanos ou humanóides. O mais notável de todos os conhecidos no Côa é o antropomorfo ictifálico da rocha 2 de piscos […]» (p. 144). A 25 de abril de 2017, dois jovens de 28 anos, integrados num grupo de outros ciclistas, atravessam o PAVC e junto à rocha 2 da ribeira de Piscos fazem a inscrição “BIK” e uma bicicleta. É uma inscrição que se sobrepõe ao “Homem da Ribeira de Piscos”, que ficará gravada na história do Côa, não pelas melhores razões, mas que revela uma profunda ignorância sobre o património.
No entanto, boas notícias nos surgem. Após apresentação de queixa ao Ministério Público pela FCP, a Polícia Judiciária da Guarda dá início à investigação e o Ministério Público constitui arguidos dois jovens. Com esta investigação, as instituições e a comunidade percebem a importância do património e que o dever de salvaguarda começa em cada um de nós. A 24 de janeiro de 2021, o tribunal de Vila Nova de Foz Côa absolveu os arguidos de qualquer crime, pois não ficou provado o dolo, ou seja, não ficou provado que o crime foi executado com a intenção, mas sim o resultado da ignorância alheia, incluindo dos próprios atores da justiça.
Todos perdemos hoje. O Tribunal validou a ignorância sobre o património em Portugal, seja ela reconhecido como Património Mundial ou mesmo como Monumento Nacional. O Tribunal poderia fazer jurisprudência com o caso, dando um sinal à comunidade que os crimes contra o património também são punidos, pois, em todo o caso, o desconhecimento da lei não significa que não a tenhas de cumprir! O Tribunal provou hoje à comunidade que a classificação e valorização do Património, enquanto bem comum, pouco valor tem para a comunidade, o que nos leva a questionar: preservar o quê, e para quem?
Investigador em Ciências do Património e Museólogo.
Vive em Vila Real e tem desenvolvido o seu trabalho e estudo na área da Museologia, das Ciências do Património e da História da Arte. Entende que o acesso à cultura e ao património é um direito de todos os cidadãos. Defende a democratização da cultura.