Terra das Liberdades? Nem por isso!

“Esta situação, entre tantas outras, mostra que os direitos conquistados não estão magicamente garantidos, sendo necessário vigiar potenciais ameaças à continuidade dos mesmos. Daí a luta ser sempre essencial. Porquê continuar a marchar? Para relembrar que o direito ao aborto é para continuar, para relembrar que todos os outros direitos que se conquistaram lutando são para continuar e que estaremos na luta pela conquista contínua de novos direitos.”
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O Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América reverteu, no passado dia 24 de junho de 2022, a decisão de 1973 (conhecida como Roe v. Wade) que estabeleceu o direito constitucional ao aborto. Esta decisão abre o caminho para a ilegalização quase imediata do aborto em quase todos os estados republicanos. É esperado que o aborto seja banido ou severamente restringido em 26 dos 50 estados no país.

E não foi preciso esperar muito tempo: o governador do Estado do Missouri, poucos minutos depois da reversão do direito constitucional ao aborto, anunciou que o Estado tomará medidas para banir efetivamente o aborto em tempo útil. Foi o primeiro estado a fazê-lo, mas não o único. Neste momento, o aborto é ilegal no Missouri, Maine, Kentucky, Tennessee, Alabama, Mississippi, Arkansas, Louisiana, Oklahoma, Texas, Dakota do Norte, Dakota do Sul, Montana, Wyoming, Idaho e Utah. Na maioria destes estados, não há exceção para violações ou incesto, apenas para casos em que não haja outra solução para salvar a vida da mãe ou pessoa gestante. Está também severamente restrito o acesso ao aborto na Flórida, Ohio, Arizona, Georgia e Carolina do Sul. Esta era uma decisão que se temia desde o início de maio de 2022. Por essa altura, uma enorme fuga de informação antevia a preparação de documentos para retirar este direito fundamental a milhões de pessoas nos EUA, mulheres ou outras pessoas que possam engravidar (não-binárias, homens trans). Importante será relembrar que os Estados Unidos da América são o quarto país a reverter o direito ao aborto desde 1994. Apenas a Polónia, a Nicarágua e El Salvador haviam avançado com legislação nesse sentido.

Mas não para por aqui. Clarence Thomas, juiz do Supremo Tribunal norte-americano, com ligações próximas a Donald Trump, defende que, aberto o precedente pela retirada do direito constitucional ao aborto, o Tribunal deve pensar em reverter os processos Griswold vs Conneticut (que derrubou as barreiras legais à contracepção), Lawrence vs Texas (que afastou leis estaduais que puniam o comportamento sexual considerado “desviante”) e o Obergefell vs Hodges (que legalizou o casamento homossexual). Há estados que estão a realizar estudos no sentido de proibir a mulheres grávidas viajar, em especial para impedir que estas realizem abortos. Isto aconteceu já no Missouri, desde maio. O governo do estado, esperando a reversão da lei ao nível da constituição, começou por propor que as mulheres que saíssem do Estado para abortar fossem processadas. A lei foi bloqueada, mas deverá ter ganho força com o novo contexto constitucional.

Mas por que razão há tanta preocupação em realizar autênticos retrocessos civilizacionais na sociedade americana? A proibição do aborto não faz reduzir o números de procedimentos desta natureza realizados, mas retira-lhes a segurança, fazendo o número de pessoas que morrem ao realizá-los disparar. Para reduzir o número de abortos, será necessário investir em educação sexual (constantemente bloqueada pelos conservadores), democratizar o acesso à contraceção, generalizar o acesso ao planeamento familiar e investir em habitação, saúde universal e educação.

Para além de expressões patriarcais de machismo e misoginia primária, há razões de índole política e económica. Olhando para a História, nos séculos XVI a XVIII ocorreu a Caça às Bruxas na Europa. Centenas de milhares de mulheres foram julgadas e condenadas às mais diversas formas de tortura e à morte na fogueira. Não por serem “bruxas”, mas por serem insubmissas, revolucionárias, inconformistas e independentes. Estas bruxas resistiam à expansão das primeiras formas de capitalismo, que pretendia explorá-las a elas e à Natureza. Muito curioso que os primeiros julgamentos por bruxaria tenham sido coletivos e que, só mais tarde passassem a ser individuais, resultado das transformações na transição para o capitalismo, com a privatização da posse da terra e expansão do comércio. É resultado do processo de transição para o capitalismo uma crescente individualização nas sociedades, que se deve à perda de laços comunais e que tem efeitos na vida económica e social e até nos julgamentos por bruxaria.

As “bruxas”, mulheres sexualmente livres, foram as primeiras a realizar controlo de natalidade e abortos. Isso choca diretamente com os interesses do capitalismo – os abortos e o controlo de natalidade impedem o controlo capitalista da sua capacidade produtiva. Era objetivo capitalista colocar o corpo feminino e as capacidades sexuais e reprodutivas das mulheres ao serviço dos Estados e da burguesia, mercantilizando-os, uma vez que é através da reprodução que se produz um fator económico tão importante – a força de trabalho. Como diria Irene Martín “Farta até à cona de gerar a mais-valia dos homens. Trabalho reprodutivo sustenta o capital”.

Esta análise continua extremamente relevante – no mesmo dia em que o direito constitucional ao aborto foi revertido, Elon Musk publicou e fixou um tweet no seu perfil, mostrando as tendências de evolução da taxa de fecundidade dos Estados Unidos da América e referindo que esta está “abaixo de níveis sustentáveis há cerca de 50 anos”. Assim, a proibição do número de abortos faria aumentar a natalidade no país. Há também uma grande preocupação em recrutar voluntários para as forças armadas norte-americanas. Já o dizia George Carlin em 1996 – “Conservadores querem bebés vivos para poder criá-los para se tornarem soldados mortos”. Os movimentos “pró-vida” mostram extrema hipocrisia – preocupação absoluta com o feto, mas assim que nasça, nenhum esforço na melhoria das suas condições de vida. Especialmente se for negro, indígena, mulher, pobre…

Por essas razões, podemos olhar para esta decisão do Supremo Tribunal americano como o início de uma nova “caça às bruxas”. Quem abortar – será preso. Quem realizar abortos (equipas médicas) – será preso. Nos Estados Unidos, as pessoas presas não podem votar. Ou seja, quem abortar perde o direito ao voto. Nalgumas situações, um aborto espontâneo que fique no interior do corpo da pessoa grávida poderá levar à sua morte, uma vez que é ilegal realizar os procedimentos para a salvar. Esta realidade, associada às restrições de viagem para pessoas grávidas, anteveem a instalação de mecanismos de vigilância, com controlo apertado de aplicações que registam nos dispositivos digitais os ciclos menstruais. Os úteros são mais regulados que as armas nos Estados Unidos.

Esta situação, entre tantas outras, mostra que os direitos conquistados não estão magicamente garantidos, sendo necessário vigiar potenciais ameaças à continuidade dos mesmos. Daí a luta ser sempre essencial. Porquê continuar a marchar? Para relembrar que o direito ao aborto é para continuar, para relembrar que todos os outros direitos que se conquistaram lutando são para continuar e que estaremos na luta pela conquista contínua de novos direitos.

Para abortar, o simples facto de não querer ter o filho é suficiente. Mas esse direito foi violado. Estados Unidos, Terra das Liberdades? Nem por isso!

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Nascido na Suíça em 2003, desde tenra idade vive em Mortágua, Viseu. Jovem do interior, estuda Sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Olha para o Interior como uma região riquíssima e de incríveis potencialidades, mas que tem sido sucessivamente negligenciada.
As preocupações ambientais desde cedo estão presentes na sua vida. Com o advento da Greve Climática Estudantil, rapidamente se juntou às ações de manifestação. Continua e continuará presente nas lutas necessárias e urgentes, como a luta antirracista, antifascista, pelo Interior, ambientalista, feminista, entre outras.

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