Fonte inesgotável de conhecimento e prazer, poderosa ferramenta de influência e transformação política, a leitura e a liberdade intelectual chegam até a ser censuradas por regimes repressivos, ditatoriais e totalitaristas, levando a que a informação, o espírito crítico sejam negados a grande parte das pessoas.
Em pleno século XXI, assistimos cada vez mais a discursos de ódio, à propagação do medo e de conteúdos de desinformativos quanto a questões de género e sexualidade. Na Europa, EUA, Brasil e um pouco por todo o mundo, assiste-se à criação de campanhas de proibição de livros de temática LGBTQIA+. Com base em justificações de “promoção da homossexualidade” ou da “propaganda da ideologia de género”, grupos ideológicos conservadores mostram atentar a autodeterminação, a liberdade de expressão, a autodescoberta e visibilidade das experiências de pessoas LGBTQIA+.
Recordando a célebre frase de Oscar Wilde, preso numa altura em que a homossexualidade era considerada como vício e decadência, diria: “Não existem livros morais ou imorais. Os livros ou são bem escritos ou não.”
Reconhecendo a importância da leitura e da educação para as temáticas de igualdade e não discriminação, pretendemos conhecer as estantes Queer e Feministas de algumas personalidades portuguesas. De forma a partilhar novos mundos que os livros encerram, questionamos:
- Qual o livro que mais a marcou/influenciou pessoal e profissionalmente?
Ambos os lados são síncronos na maior parte das vezes, não existe uma distinção óbvia entre o lado pessoal e o lado profissional, se lhe posso chamar assim. Acaba por ser aquilo que me inspira enquanto pessoa que se transpõe depois para o meu universo da escrita, costumo dizer que sou poeta de espasmos, não sou metódica, com o bom e com o mau que isso implica, quer dizer que na grande maioria das vezes o que escrevo tem raiz no que sou ou no que poderia ser. Nesse sentido, diria que o livro mais marcante terá sido A Mosca Iluminada de Natália Correia. Esse livro foi-me oferecido muito cedo, teria eu talvez os meus dez anos. Creio que o fascínio se deveu a ter sido tão assoberbante para uma criança daquela idade. Talvez por não ter ainda as ferramentas humanas necessárias ao entendimento, pelo menos de forma consciente, de poesia daquela dimensão, acredito que tenha ficado gravado em mim subconscientemente – ou talvez supraconscientemente – o universo, a cadência e o sabor da poesia de Natália Correia.
- Algum autor/a com que se identifica mais e que segue há mais tempo?
Além de Natália Correia, descobri pela mesma altura a poesia de Ary dos Santos que me despertou interesse pela acutilância e musicalidade que lhe é inerente. Mais tarde, já na adolescência, tive o primeiro contacto com Fernando Pessoa, que na altura se revelou uma esperança pela sensibilidade que me permitiu explorar. Já mais perto da idade adulta, descobri por um acaso feliz na internet a vida e a obra de Al Berto, que infelizmente na época estava bastante esquecido, agora felizmente um pouco menos, mas continua a não lhe ser dado o devido reconhecimento, como tristemente acontece com tantos outros nomes também. E encontrar Al Berto foi encontrar um novo mundo linguístico, um novo potencial expressivo, dos que mais me alargou horizontes e a quem regresso sempre que de alguma forma sinto saudades da sensação de “casa”, esse lugar longínquo e volátil que a sua escrita me traz.
- Qual a leitura que acompanhas e recomendarias aos nossos leitores?
Para referir mais alguns nomes que de alguma forma também marcam o meu percurso, diria, quanto a mim absolutamente geniais, cada um deles no seu registo e no seu espaço, António Lobo Antunes, José Cardoso Pires, no campo da música e de reflexões fulcrais actualmente, Capicua. Mas, acima de tudo, recomendaria que apoiem a escrita que sentirem que faz sentido e vos acrescente, e que mantenham a vontade de descobrir. Mais do que seguir tendências ou sentir imposições, aquilo que acho realmente poderoso em termos de escrita é encontrar quem intrinsecamente nos preencha ou nos faça questionar, sentir, observar de alguma forma, ou de forma nenhuma que é igualmente válido. Mas creio que isso só se consegue experimentando e preocupando-se pouco com convenções e menos ainda com lobbies ou com contagens de seguidores, que tantas vezes rotulam, nessa falsa ideia de quantificação do valor artístico, já de si tão subjectivo, antes mesmo de parar para dar espaço a que a escrita nos habite. Existe uma infinidade de gente a escrever desde as entranhas, que devido à forma como funciona o mercado artísitico e devido aos interesses imediatistas, sensacionalistas e capitalistas não dispõe de oportunidades para que a sua escrita seja reconhecida e valorizada, e muito menos pode dedicar a sua vida a essa arte, coisa que tem um impacto directo no panorama artístico e sobretudo em quem tem direito a fazer parte dele.
Inês partilha ainda a sua paixão pela leitura:
O acto de ler iniciou-se em mim como uma questão de escape, essa liberdade de poder estar onde não estava e ser mais do que eu sentia que era tornava-se aliciante. Não tardou a surgir a escrita, e desde aí a perspectivação do que leio revelou-se de forma mais densa, quase como que observando o detalhe de uma filigrana. Essa perspectivação torna a leitura muito mais mental. Por um lado é óptimo, no sentido em que me enriquece, por outro lado não deixa de existir uma batalha interna para abandonar a tendência em averiguar os bastidores da escrita alheia, e simplesmente deixar-me ir onde quem escreveu me quiser levar. Muitas vezes isso faz com que leia muito menos do que seria de esperar, ou que, quando o faço, já se trate inconscientemente dessa busca de referências. Então talvez eu não seja aquilo que se esperaria de uma pessoa que escreve neste sentido. Não sou a pessoa que leu todos clássicos ou devorou todas as obras do mesmo autor, nem mesmo os que mais me apaixonam. Não digo isto com especial orgulho, muitas vezes sinto que fico aquém daquilo que deveria ser, mas, em última análise, a minha relação com a leitura assenta em tentar que esse mergulho, rápido e de uma permeabilidade intensa, seja o mais prazeroso possível, no sentido psiconáutico que o encontro das palavras certas possa trazer. Ao fim e ao cabo, sim, continua a haver dentro de mim essa vontade impoluta de disfrutar da viagem, cristalizando na escrita a minha percepção do que me permito absorver.
Inês Marto, poeta e autora queer, nasceu em 1995. É licenciada em Estudos Artísticos, Variante de Artes do Espectáculo, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Publica online em nome próprio, desde o ano de 2010, em prosa, verso, crónicas e escrita criativa. Lança em 2017 o primeiro livro, Combustão, consistindo numa junção desses vários anos de escrita. Em 2019 lança o segundo livro, Metamorfose, uma colectânea dos seguintes anos de escrita, organizado segundo o percurso catártico das fases de uma borboleta. Para além da vertente literária, assume-se enquanto activista pelos direitos das pessoas LGBTQIA+ e das pessoas com deficiência, e mantém também uma vertente artística ligada às áreas cénicas, tendo já sido co-autora de peças de teatro, mas revelando especial paixão pela música enquanto letrista. Como principais temas, literariamente, destacam-se sobretudo as relações humanas e as questões existenciais e identitárias.
Artigo publicado em Leituras Queer
“Queer” = bizarro, excêntrico, estranho, não conforme. O termo serviu por mais de um século para associar a homossexualidade a doença, crime, pecado e exclusão social. Hoje, o conceito é usado como designação e/ou identificação da luta pessoal e/ou coletiva que critica e resiste às noções essencialistas de identidade.
Leituras Queer pretende ser um espaço de reflexão, partilha e divulgação de obras Queer e Feministas em português. Um espaço que, tornando visível as vidas Queer pretende desconstruir o tabu; a homofobia; os estereótipos e invisibilidade que continuam a ser alimentados num contexto internacional de ódio, conservadorismo e medo.
Este é um projeto que pretende empoderar, estimular o pensamento para novas práticas mais disponíveis para o diálogo horizontal e para a aprendizagem mútua.