O Incrível

Foto de Iolanda Ogando | Flickr
Há umas semanas, durante um debate integrado na campanha eleitoral, o presidente de um dos partidos competidores afirmava que iria seguir com as suas “guidelines, como se diz em português”. Assim mesmo: “guidelines, como se diz em português”.

Provavelmente, dar-lhe-ia muito trabalho pronunciar palavras ou expressões portuguesas, como linhas orientadoras, orientações gerais, orientações (tão só) ou, até, se fosse o caso, diretrizes, normas, instruções – o mesmo vocábulo é usado em expressões inglesas com estes e até mais sentidos. Preferiu sobrecarregar-nos com o seu inglês de pacotilha, não apenas em vez do português, como abunda por aí, mas como se fosse português. Vindo de tão alto dignitário político, convenhamos…

Confesso que já tinha riscado o incrível do meu dicionário. Tal como o inacreditável, o inimaginável, o impensável. Tenho de ter mais cuidado. Nunca mais direi desta água não beberei. Algumas vezes, a coisa reacende-se e ultrapassa-nos. E lá terei de morder a língua e estender a mão à minha própria palmatória – ainda há palmatórias; outras e com muitos olhos.

Pronto, está bem, o incrível ainda existe. Realmente, no nosso frívolo falar, mesmo que seja de um presidente partidário, o incrível tem a companhia do inacreditável, do inconcebível, do inexplicável, do inverosímil, do inimaginável, do inadmissível, do implausível, do incompreensível. Apesar disso, as bengalas de vocábulos em inglês continuam a pintar auréolas muito doutoramentais.

E, nós por cá, plebeus do dia a dia mais e menos sofrível, estamos tão habituados a reagir com a interjeição do “incrível” e seus equivalentes (uns mais estridentes do que outros) que já não ligamos. Ele há tantos incríveis a passear por aí.

O neto que bateu na avó; a chacina dos curdos; as cenas de pancadaria às portas das discotecas; o Trump que suja tudo o que toca; o crime de lesa-pátria de uma deputada eleita por alguém ter hasteado a bandeira de um país lusófono face ao idêntico, mas honroso, gesto quando a nossa aparece agitada por mãos portuguesas em palcos de França; os tantos processos que marinam em águas submarinas de bacalhau pela justiçaria; os governantes nacionais, regionais e locais que fogem do bem comum.

Dantes, havia o Jornal do Incrível, o Crime e não sei se mais algum. Bastavam para a pastagem. Agora, todos os jornais estão apaixonados pelo incrível e o que fazem com ele é quase sempre incrível. E o bem comum é encaixado na classe do mais incrível. Até as crianças, Senhor, até elas brincam como máquinas e não como pardais!

Dominados pelo incrível populante, ficamos com o moral (e a moral) em baixo, depressivos, cabisbaixos, às vezes “cabisaltos” (permitam que invente) para espairecer – enfim, a vida são dois dias e não pode ser só entristecer.

Mas, continuo com o incrível encravado nos meus neurónios. Já disse que tentei apagá-lo do meu dicionário, mas terá ressuscitado e multiplica-se à velocidade da sombra – a gente anda a apagar tanta coisa que já não sabe se está a apagar o que já ardeu ou o que irá arder. Na verdade, há tanto lixo no monte do incrível que já não sei como proceder. Arrasar o incrível? Deixar os seus carvões a fumegar?

Podem julgar que estou a passar-me – que isto da idade só dá para trapos de limpar o que não querem que seja limpo. Talvez por isso, estou com o credo cada vez mais baralhado. Será que estarei também a lavrar no monte do incrível? Há tanta coisa para pensar e gostar e ainda terei de alombar com cada vez mais incríveis?

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Nasce em Castelo Branco em 1944. Em 1961 vai estudar Físico-Químicas para a Universidade de Coimbra onde com a crise e a repressão académicas nasce a sua consciência política. No ano de 1969 integra os quadros do Serviço Meteorológico Nacional. Mobilizado para a Guiné Bissau, consegue no entanto ser destacado para Timor-Leste, onde permanece entre 1973 e 1974 a chefiar o Serviço Meteorolóqico.
Em 1984 passa a ser um dos rostos da informação meteorológica na RTP, e dez anos mais tarde da TVI, onde permanece até 1998. Regressa à sua cidade natal em 2002 para tentar desenvolver um projeto-piloto de regionalização de atividades meteorológicas.
É autor dos livros “Mudam os Ventos Mudam os Tempos – Adagiário Popular Meteorológico” (1996), “Voltar a Timor” (1998), “Podia Ser de Outra Maneira (2000) e dos livros de poesia "Corpo Aberto" (2016) e "De muitos ventos e utopia" (2018).
Com um currículo extenso, podemos resumir a vida do “poeta do tempo” como: meteorologista e cidadão no tempo que lhe calhou nesta vida de entre duas noites.Em 1984 passa a ser um dos rostos da informação meteorológica na RTP, e dez anos mais tarde da TVI, onde permanece até 1998. Regressa à sua cidade natal em 2002.
É autor dos livros “Voltar a Timor” (1998), “Podia Ser de Outra Maneira (Imagem do Corpo)” (2000), e da antologia “Mudam os Ventos Mudam os Tempos – Adagiário Popular Meteorológico” (2002).
Com um currículo extenso, podemos resumir a vida do “poeta do tempo” como: meteorologista e cidadão no tempo que lhe calhou nesta vida de entre duas noites.

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