Aprender a comer

Estava sentado inerte a olhar para o longe entre a junta dos azulejos que cobriam a parede, uma das minhas gatas olhava para mim com um olhar inquiridor.

Pensava sem tabus, como sempre que nem me apercebo do quão inconvenientes que os meus pensamentos podem ser, na minha primeira vez recordando, simultaneamente, com um olhar quase sociológico e alguma saudade (mais introspeção “científica” do que saudade).

Nos primeiros anos, quando começamos, não gostamos muito de comer e, às vezes, é com obrigação que o fazemos, mas, mais tarde, adoramos comer e engordamos até. Uns mais gordos que outros.

A primeira vez que comi foi com alguma ânsia. Toda a gente fala tão bem de comer… E acabou por ser mais estranho que prazeroso. Fui atrapalhado e mais demorado do que o que pensava, como se estivesse a mastigar em seco só para acabar a refeição e despachar tudo aquilo. Mesmo assim, tive a ventura de o fazer com a pessoa que amo- escusado será dizer que foi ela quem me deu o comer todo à boca, colher a colher.

Estava apenas sentado, só tinha de mastigar.

Não foi tão bom como diziam, não foi…O som dos carros que passavam também não ajudavam num encontro com a noite fria.

A degustação é algo que se treina. Pela segunda vez, continuou a não ser grande coisa, mesmo sendo uma deusa a cozinhar… e cozinha muito bem! Dessa vez foi ainda mais trabalhoso, eu também tive de participar e dar de comer- eu nem sequer sabia como comer, ainda não sei! Às vezes até troco os talheres e falho…

Suei, suei e cansei-me… só a demonstração de prazer dela já foi alguma coisa para mim. No entanto, foram demasiados líquidos e demasiado esforço para uns segundos de prazer muito físico que esgota as energias e é por demais cansativo, mais do que correr ou lutar num combate corpo a corpo renhido de artes marciais. Como num combate empatado, já só estava cansado e à espera do último murro.

Com o tempo, comecei a gostar e a aprender.

Outro dia, durante uma noite quente-fria, comemos os dois, várias vezes, o momento êxtase foi quando ela deitada nos meus braços pede que vire costas porque não consegue escrever sobre nós enquanto eu observo. Os poetas e os loucos têm esta mania de se atraírem mutuamente por mais longe que possam estar. A alma grita! Nós somos só os loucos… só tão loucos. A vontade do meu corpo pede o seu corpo nu sob o meu, a minha real e sincera vontade suplica por o seu corpo nu coberto de árvores e flores mostrando os seus medos, as suas pernas, o seu amor, os seus seios, a sua loucura clamando pela minha.

Ainda não aprendi completamente a comer, mas continuo sempre a amar a poesia em conjunto.

Claro que não contei os meus pensamentos à minha gata, ela nunca iria compreender, pode escolher facilmente a poesia a sós, é esterilizada…

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Paulo Rodrigues, Santa Comba Dão, começou a escrever muito cedo.
Participou em várias coletâneas de poesia, prosa ou contos infantis organizadas por vária editoras como a "Orquídea Edições", "Lua de Marfim" e "Modocromia". Escreveu também por diversas vezes em edições "Sui Generis" e a prestigiada "Chiado Books".
Colaborou na organização da fanzine lançada em Santa Comba Dão, "Cabeça Falante", que inaugurou a editora recém-criada "Canhoto Esquerdino R", onde foi Assessor de Comunicação não remunerado.
É criador e administrador do blog "lagrimasdavida.blogspot.pt"

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