Auto-estrada I

I

“Escondidas no ondulado das telhas centenárias, fibras de colmo desfiam da prancha de madeira. O equilibrismo está em manter o celeiro isolado; no exterior, do sol ou da chuva, no interior, da humidade. Em cada ripa de madeira imagino um piano a tocar Satie, tão próximo estou da música, tão próximo estou do silêncio. Acrescento melancolia a este relato, nostalgia não. 

Eu sei que o telhado de colmo necessitou de cuidados, como quem remenda umas meias puídas, para evitar que o grão se estrague por causa da investida dos elementos. Nada de modernidade aqui. Eu sei que o telhado de colmo necessitou de cuidados, estávamos em Março, e as chuvas de inverno não davam tréguas; todos os materiais de antanho, foram substituídos por chapas de metal, naquele dia de Agosto, cinco anos atrás. Ah!, como agora me recordo, não sou carpinteiro, só tenho a paciência de um São José, isto quando não ponho o pé em rama verde. Estou longe e não posso fazer nada de momento. A tempestade soltou as chapas, e as chapas foram roubadas. Não temos ninguém que coloque as chapas, e eu não sabia que os meus pais colocaram o palheiro na imobiliária novamente. 

Se eles não podem fazer o trabalho, pois que alguém da imobiliária contacte um profissional. Como sabe, esse palheiro tem uma longa história que conhecemos muito bem. Eu sei que as paredes podem cair e perderemos valor patrimonial do edificado. Vai ter de esperar. Vou marcar férias.

 

Quero deixar aqui um testemunho, para combater a erosão do tempo, fazer uma magia e reparar o telhado. Eu sei que houve alguém que renovou o colmo dos antepassados, até o casmurro pai, que mantém esta relíquia intacta, faz e desfaz o puzzle das telhas; custou a se render à folha-de-flandres. 

Como é ternurento escutar o pranto da chuva no metal. Terapêutica pluviosa. Não consigo renovar nada, a modernidade aqui é uma procrastinação. Planos e mais planos, sempre a porra dos planos. Não consigo, falta-me o dinheiro, tempo tenho muito, até de sobra. Fico aqui na fronteira dos impossíveis a matutar nas mulheres balzaquianas que adoram telhados de colmo nas Caraíbas, com música de discoteca e tequila, mas que têm alergia ao património histórico e popular português. As paisagens simples e brutas preteridas pelos mosquitos, a seiva dos coqueiros e as drogas de recreio. O que mais me humilha é a alegria, uma roda em movimento num parque de diversões. Montanhas russas de sensações. Fico enjoado e deprimido, não consigo viver assim, sempre alegre. O que mais querem? Sim, a música não é sensual o suficiente, e a estante do bar lusitano tem bebidas austeras; vinho tinto, licorzinhos de monges, espumante da Bairrada. Tenho de desenterrar uma relação, retirar a cabeça da areia. Não tenho tempo para telhados projectados para a atmosfera por um furacão. Deixei o país para trabalhar, a Solange deixou-o para dançar. Foram muitas as noites de enganos, bem como as noites sem dormir, os quilómetros e as digressões acompanhando as danças de Solange. Quando fomos de férias para uma dessas ilhas com casinhas de palha, para conciliar a rotina com os sonhos, voltei à noite dos enganos. Noite de grandes dúvidas. Vi que para manter a solução, aqui no Norte da Europa, tudo o que me resta é entrecruzar com Solange esta vida moderna, e evitar o saque por algum pirata calvinista, como quase aconteceu nas férias, nas últimas férias exóticas. Por agora, a coisa está estável, uma criança mudou a nossa vida. Já é tarde demais para trocarmos, ou mudar de ideias sobre a encomenda. Agora é preciso comer tudo até ao fim, beber o cafezinho e dividir a conta – sem grandes espantos na cara e espectros no horizonte.

Quero deixar aqui, neste texto, uma memória descritiva do ondulado das telhas centenárias e do colmo, que deixei de ver, substituído por chapas de metal, lá no país profundo; sim, precisava de ir a outra profundidade, sim, ao meu interior. No fundo, por mim, deixava cair tudo abaixo, como faço com este longo e imperfeito texto, mas parece que é pecado. Tenho uma réstia de consciência. Certo dia quando fui de férias à aldeia, depois de passear o cão, vi uma ruína de uns vizinhos a esboroar-se, como um castelo de cartas. O ponto fraco do inimigo era o tempo e a incúria, era fácil antever a jogada, a derrota foi deixar passar tempo. Como uma  táctica de Sun Tzu. Foi rápido, mas demorou uma eternidade até acontecer aquele momento. A grande derrocada. Como tudo é circular. Tenho a intuição de que aguardo a chegada dos bárbaros, as retroescavadoras, para acabar com esta austeridade. Todos nós ansiamos pela chegada dos bárbaros para acabar com esta ordem de coisas, é como um pontapé certeiro nos testículos. Estou agora a recordar-me de uma nota de rodapé de um documentário sobre o fim do Império Romano. Toda aquela gente pisada por impostos, e a servidão nos campos, quando se acabam os últimos gramas de prata e ouro nas minas, e se implora aos bárbaros pela libertação do açaimo da velha ordem.”

 

Despachei o email, tinha dito de minha justiça, mas tal como se atira com uma pedra para um charco, as ondas da reverberação fizeram acordar velhas queixas sobre uma história com uma auto-estrada, o último degrau do desenvolvimento do mundo.

Não estou lá, escrevo de memória, enquanto observo o papel de parede e sinto o verde a cravar os sentidos, como o verde dos pinhos. Agora estou em paz. Pode ser ridículo, mas tenho uma coisa para contar, um palheiro salvou a minha vida. As recordações voltam em ciclos, como o girar das ventoinhas eólicas que observo desta janela, em terras de William Wallace. Ao olhar a torre da ventoinha, qual voluta, agradeço a Deus a bênção de hoje me encontrar a trabalhar num hotelzinho no norte da Europa.

 

Parte I do Conto Auto-estrada. Ver mais aqui.

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Paulo Seara (1981) natural de Vila Real. Licenciado em Animação e Produção Artística pelo Instituto Politécnico de Bragança em 2005. Escreve poesia desde 1999, tendo colaborado esporadicamente em várias publicações em papel ou online. Colaborando com o blogue Pomar de Letras no qual publicou poesias, contos, textos soltos e traduções, e Inefável – Revista em Rede de Poesia. Vive em Edimburgo, na Escócia, desde 2014. Em 2007 foi co-autor do livro Crónicas do Demencial, o Porquê do Síndrome Nilhoo, editado pela Corpos Editora. Publicou a colectânea de poemas Livro Daninho (Edições Bicho de Sete Cabeças, 2016), e Take Away (Edicões Bicho de Sete Cabeças, 2017), ambos os livros estão disponíveis para download gratuito em smashwords.com. Para além de poeta Paulo Seara é artista visual desde 2005, tendo realizado mais de uma dezena de exposições. Os conteúdos de artes e letras produzidos por Paulo Seara podem ser observados em: https://www.facebook.com/prseara/ .

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O renascer da arte a brotar do Interior e a florescer sem limites ou fronteiras. Contos, histórias, narrativa e muita poesia.

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