II
Desculpa-me a interrupção constante, leitor. Não sou escritor. Chamo-me Tiago Álvares Júnior, filho de Tiago Álvares e de Ana Terra. Quando fui adolescente, não, desde que sou, porque não deixei de o ser. Sou um puto rebelde a olhar o céu. Não era bem de mim que queria falar, mas aconteceu assim, se calhar é o destino. Uma das minhas colegas de escola recebia elogios porque escrevia umas histórias, escriturava diários; eu que burilava e brilhava num fogo efémero, também escrevia as minhas histórias, mas não recebia elogios. Talvez tivessem medo de que eu me transformasse numa espécie de Henry Miller. Existia ali uma necessidade inata de me talhar como o cómico de situação, o estoura-vergas. Não fui, nem sou o Henry Miller, e só li um livro dele de contos, “O Sorriso ao Pé da Escada”. Miller acreditava que os palhaços eram seres de natureza religiosa, como um Cristo crucificado em frente ao público. O que esta gente gosta de escândalo! Do Miller, da violência. Nesta narração suburbana sou o palhaço, e esta história centrar-se-á num erro maior do que as vidas da própria narração. Mais do que tudo, tentava ser livre e escrevia, no meio das paredes que me cercavam. Hoje sou eu que observo estas paredes tingidas de verde de uma grande imbecilidade.
Perguntou-me no outro dia o meu patrão, porque nunca fora a Burns Supper. Naquela semana o cozinheiro escocês ficou doente (estão sempre a adoecer) e fiquei com a tarefa de o substituir, os hóspedes, os trabalhadores e engenheiros não sobrevivem a papos secos, café com leite e sopa de alho e batata, do pacote tetrapak, cinco dias consecutivos. Pus mãos à obra e fiz sopa de tomate como deve ser, para gáudio do meu patrão, do hotel, da juventude que corre este país de lés-a-lés de mochila às costas.
– “Tiégo”, a partir de hoje, és tu quem faz as sopas. Mas continuas na recepção! Disse o patrão.
Recordo-me de por essa altura ler no jornal que procuravam donativos para reparar a casa que o pai de Robert Burns construira para habitação do núcleo familiar, no século dezoito. Nunca vi uma casa com telhado de colmo na Escócia. As saídas do hotelzinho são raras. Até mesmo aqui deixam chegar o património a um estado lastimoso, e os capitais não abundam para reparar a casa onde nasceu, num mês de Janeiro, um poeta. Quanto valerá um quilo de colmo? Se calhar têm de importar. Está mal, se assim for. O meu patrão ficou chocado com o despreparo do lar da família de Burns. A associação que defende o leito natal de Robert Burns não ganha dinheiro suficiente para restaurar o telhado, se ao menos fossem donos de uma destilaria de uísque. E o meu patrão pensou, ou melhor fez uma analogia entre as dificuldades em arranjar uma parceira para construir um lar. São precisos dois para dançar o tango. Aqui na Escócia, o tango são borracheiras, consumismo, enfatuação, hipotecas, viagens, insinuação sexual, a procura de uma noite de poesia, reciclando prosa sórdida, quando o importante seria que a poesia durasse mil e uma noites e houvesse menos prosa de aeroporto. Apesar dos sobressaltos da profissão de Solange, e às vezes metendo a cabeça na areia, dou-me por satisfeito. Até lhe disse, ao jeito de pedra de toque, não há ninguém ingénuo o suficiente para se deixar consumir por esses motivos. Já ninguém quer ir regar as estrelas. Não disse nada ao meu patrão, mas fez-me pensar novamente na auto-estrada que me iludiu a vida, oh!, auto-estrada maldita! Eu vou contar-vos como foi. Vamos lá chegar. Prometo!