Auto-estrada VIII

VIII

Tiago e a sua família não conseguiram aproveitar as maquinações do sistema, as notícias não eram boas, eram uma bosta, desta vez não lhes saíra o jackpot, encontravam-se muito contrariados. Os topógrafos tinham mesurado a auto-estrada mas os engenheiros descobriram uma mina, a fonte dos seus próximos problemas e dos futuros. Continuavam com o palheiro de xisto, com telha de 1927 e colmo… 

No fim de tarde, partiu desgraçadamente na sua bicicleta de montanha colina acima, ouvindo música, passou pelo palheiro de antanho e depois desceu a ladeira, esquivando-se a uma queda no carreiro que descendia arriscado, em direcção à auto-estrada. Pedalava forte, a música zumbia nos auriculares. Atravessou um rego de água que se atravessou no olhar, vindo da mina recém descoberta. Depois entra ilegalmente em território não cartografado, na terra batida da auto-estrada do futuro. Óbvio que se encontrava com raiva, tinha sido roubado o seu futuro. Passou por montes de saibro e asfalto, serpenteava por sólidos blocos de cimento armado e multicolores bloqueadores de espaço cheio de água. Eram seis e meia da tarde, os trabalhadores tinha terminado o dia, e não se viam seguranças. Tiago pedalava naquilo que seria uma auto-estrada, mas por agora era um cenário apocalíptico, as goelas da terra abertas, num grito mudo que se prolongava pelo horizonte. Pedalava e prosseguiu até ao abismo, enquanto sentia o seu abismo pessoal, estacou quando o grande rasgo terminava e do outro lado se aproximava o grande montante do futuro, um viaduto ganhava forma. Foi penetrado por um cheiro a alcatrão, nojento e acre cheiro de alcatrão. A auto-estrada estava perto. Desmontou da bicicleta e olhou a paisagem por mais uns minutos, até esgotar os pontos de interesse, depois bebeu água e escarrou no chão da futura auto-estrada, um escarro verde, no estéril chão poeirento. Mirava o horizonte e viu um automóvel amarelo aproximando-se do viaduto. O automobilista apita, era um segurança, tinha de sair de fininho, não podia estar ali. Voltou-se, pegou na bicicleta e rapidamente voltou para casa, ainda tinha de subir meia hora pedalando. Tinha feita a incursão e satisfeito por observar o impacto ambiental, ainda se sentia irritado com o que  escutou quando conversou com a mãe, mas como pedalara, o seu mau fígado tinha-se despegado da alma, e desaparecera a cada pedalada e acorde de música. Estava calmo. Ao sair repara na ruína parcialmente derrubada pelas máquinas de rastro uma bandeira laranja do PSD exangue pelo chão, e pensa – Estes sim vão encher-se dele!

Nos seus dias de aluno liceal, Tiago gostava de sentar-se na varanda da vivenda, vendo passar os autocarros envoltos na noite. Retornou dez anos depois, agora as memórias são doces, mas os dias amargos, pesa-lhe o cérebro depois de mais um dia no part-time. Agora conta os autocarros, sabe os seus destinos, recorda-se de caras e passageiros frequentes. Era um exercício de observação que exigia paciência de chinês. Ao fim da noite, insuflado com tanta motorização, recolhia ao quarto com tranquilidade, meditava e desejava no futuro as suas viagens, mas por agora a viagem fazia-o semicerrar o olhar. Agora, com 25 anos, formado em ciências matemáticas faz contas ao dinheiro da redundância laboral e projecta a sua sombra nas paredes da estação rodoviária do Seixo. Os dias transformaram-se em meses… meses que foram sendo entretidos com o teatro da auto-estrada. 

Vou bazar, vou rebentar lá fora, vou de férias e não volto. Enquanto fuma um cigarro, um vulto verde oliveira varre o chão contra as rajadas quentes do vento ao serviço do programa ocupacional. 

Os pobres têm sorte, francamente, nem sabem a sorte que têm, sem nem pensarem muito na sorte que têm. Oh! Sortudos! E eu aqui com um part-time.

Nunca perdeu o hábito de ver chegar e partir as carreiras, imaginando as que perdeu e as que teve de abandonar pelo caminho. Lá está ele na estação rodoviária do Seixo, ao que dizem «a mais movimentada do distrito», incapaz de despregar os olhos daquele hirsuto pedregal do Marão que deixa qualquer um turbulento, que nenhum deus, por mais poderoso, seria capaz de dividir em dois. Do culto às serpentes até Maranus e, deste último, até Jesus Cristo, o Deus da nossa era. Leva uma existência pacífica, como um ruminante, que talvez peque por ser dolorosamente solitária, para não dizer insípida.

A auto-estrada rompeu o seu destino inexorável, mas esquivou-se do alvo. Ainda não acredita. O palheiro permanece intocável, como uma árvore sagrada na Índia que resistiu às máquinas de rastro. O momento mais promissor, cortando a linha de chegada, mirra como um lírio do campo. O pai, a mãe, sem o jardim japonês; a agente imobiliária que apareceu como um Mercúrio salvífico, lamenta-se, não tem palavras, disse que os engenheiros desviaram a auto-estrada por causa de uma mina de água. 

Então, a agente imobiliária disse:

– Não fiques triste, querido, os topógrafos encontraram uma mina de água. Não te disse nada ontem, para não ficares irritado, sei bem como é importante vender aquela propriedade!

– Foda-se, não digas mais nada! E dito isto pediu um copo de água e uma aspirina.

– Não vale a pena ficar com a cara desgrenhada. Enquanto falava, engasgava-se-lhe a voz. Repara, posso colocar essa propriedade numa bolsa para investidores, ou podes mesmo investir, com a auto-estrada ao lado.

-Quero que o palheiro se lixe! Disse furiosamente.

A agente imobiliária, falou com a mãe de Tiago, ligara-lhe num Domingo à noite para passar logo de manhã no gabinete da imobiliária, era o fim da picada. Tiago viu-se a cair do precipício. Completamente desesperado com o desaire. Os seus pais foram os primeiros a saber, teriam de ter um bom fígado para aguentar com esta novidade. O palheiro, de todas as propriedades, continuava inamovível; e mandava-o lixar-se; com toda a sua revolta Tiago virou as costas e despediu-se da agente imobiliária. Queria meter-se em casa, fechar a porta do quarto, não fazer mais nenhum som, esperava abrir as arcas do tesouro, ter uma parte da indemnização; 10.000 mil euros. Saiu da cidade traído, conduzindo o automóvel cruzava-se com outros automobilistas, cara fechada.

Tiago regressa aos tempos liceais, dobrado na varanda. Durante esta noite de Julho, o trabalho assemelha-se à digestão de uma dobrada. Calor infernal, noite tropical. Intumescências devoram as entranhas. Os autocarros sobem o acesso e viram à direita, trazem passageiros em sobressalto, como os bombeiros que sobem aos cabeços da montanha, onde se esboça um incêndio. Tivera um turno lixado, sem ter tempo para comer, e ao chegar a casa devorou o tupperware com a comida que tinha levado para o trabalho.

 

Parte VIII do Conto Auto-estrada. Ver mais aqui

Outros artigos deste autor >

Paulo Seara (1981) natural de Vila Real. Licenciado em Animação e Produção Artística pelo Instituto Politécnico de Bragança em 2005. Escreve poesia desde 1999, tendo colaborado esporadicamente em várias publicações em papel ou online. Colaborando com o blogue Pomar de Letras no qual publicou poesias, contos, textos soltos e traduções, e Inefável – Revista em Rede de Poesia. Vive em Edimburgo, na Escócia, desde 2014. Em 2007 foi co-autor do livro Crónicas do Demencial, o Porquê do Síndrome Nilhoo, editado pela Corpos Editora. Publicou a colectânea de poemas Livro Daninho (Edições Bicho de Sete Cabeças, 2016), e Take Away (Edicões Bicho de Sete Cabeças, 2017), ambos os livros estão disponíveis para download gratuito em smashwords.com. Para além de poeta Paulo Seara é artista visual desde 2005, tendo realizado mais de uma dezena de exposições. Os conteúdos de artes e letras produzidos por Paulo Seara podem ser observados em: https://www.facebook.com/prseara/ .

Outros artigos deste autor >

O renascer da arte a brotar do Interior e a florescer sem limites ou fronteiras. Contos, histórias, narrativa e muita poesia.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Related Posts
Skip to content