XI
No corredor das galerias de um centro comercial, os sapatos de Tiago ecoavam minerais nos mosaicos ebúrneos, seus olhos passavam revista às montras das lojas, progrediam num passo descomprometido e solto como a sua camisa engomada. Oportunamente no átrio do centro comercial encontrava-se como um nicho, uma área de anúncios, publicidade e panfletos com eventos culturais. Tiago procurava no confuso sortido de papéis uma surpresa cultural para o próximo encontro com Solange. Era Verão e não faltavam eventos. Os dedos percorriam os panfletos, pararam com surpresa num panfleto colorido de cores tão intensas, que quase se podem comer. Com o panfleto agarrado na mão, sorriu. Era uma imagem que abria o apetite. Alguém tinha deixado um anúncio de um espetáculo de striptease. Claro que não poderia levar Solange para um espetáculo degradante, apesar de serem ambos adultos e vacinados, de uma modernidade bem burilada.
Mas eis que o suor começa a sair da franja do cabelo, as mãos tremem. Sórdido, sórdido, panfleto sórdido. O olhar estupidificado de Tiago repara que a dançarina tem muitas semelhanças com Solange, aliás “Sol” é o nome da artista. Solange é uma dançarina exótica, mas Tiago pensava que ela era mais uma formadora, uma professora; uma coisa que não lhe tirasse o sono. Sentiu uma grande raiva na curva do olhar. Tiago estava metido num grande granel; o seu olhar basicamente vitrificou.
Que fazer? O espetáculo seria na próxima noite, a mesma noite que Solange tinha reservada para treinar, alegadamente. Afinal, a noite de Solange seria para mostrar o cu, as mamas e as partes pudendas, com artifícios carnais, junto de um público boçal, alguns deles seus conhecidos. Ganhar dinheiro não estava fácil para ninguém, mas ela fazia aquilo porque deixou de acreditar no seu ofício como designer e ilustradora. Enfim, aguentar com aquela pressão também não era para meninos. Tiago tinha de fugir dali, não que estivesse a ser observado, necessitava de ar e espaço para respirar, ganhar coragem para tirar a fundo esta questão. Não tinha de discernir uma solução, bastava ir ao clube, tal o seu nervosismo. Desovar no espaço sórdido como um peixe migratório; por outro lado o clube também estava a necessitar de forrar os bolsos, não era um evento normal na cidade – Strip!
A sua paixão estava à prova, tinha medo de tornar o seu amor numa fotocópia de uma fotocópia, que desaparecesse inexoravelmente ao fim de muitas tiragens. Deu um pulo para trás, limpou o suor da testa às calcas e preparou-se para visitar o tugúrio onde se desenrolariam as danças macabras de Solange.
A busca por um evento cultural para animar a noite com Solange, transformara-se em uma ementa exótica para compreender aquela mulher que tinha aparecido de paraquedas numa paragem de autocarro, vinda do litoral do país. Os momentos de crise dão sempre grandes abanões no sistema.
O panfleto ardia na cabeça de Tiago. Sentia-se pronto a explodir como um vulcão. Somatizava. Tiago olhava para as paredes comprimindo-o. Imaginava Solange esfregando-se no varapau, sórdida, quente, uma anaconda virtuosa, como um Mozart do vício.
O seu comportamento despertou a atenção da mãe.
– Que se passa filho? Indaga.
– Estou mal disposto, é uma indisposição, acho que me caiu algo mal quando comi. Assegurava.
– Vai dar uma volta, apanhar ar. Eu também não estou bem, aquela maldita auto-estrada dá-me a volta a cabeça. Este ruído; as máquinas que escavam, que arrastam a terra; os camiões fazem tremer a casa; queria dormir um pouco e não consigo, cheira-me a gasóleo, a poeira invade a casa. Confessa desanimadamente.
– Maldita auto-estrada! E o palheiro por vender, a indemnização desapareceu como grãos de areia nos nossos dedos.
– Por falar no palheiro, alguns camiões passaram ao lado transportando aterro, passa por lá, o teu pai está preocupado com a segurança do palheiro! Pede-lhe taxativamente. – Vai apanhar ar filho, vai apanhar ar!
Tiago aproveitou o motivo e foi apanhar ar. Precisava de distrair a sua mente, ainda faltava um dia para o espetáculo de Solange. Subiu a colina sob um sol de fim de tarde, estava um calor leve de estufa, e o azul cerúleo empastelava na mente perturbada de Tiago. Ao chegar ao palheiro, observou a retirada dos trabalhadores da auto-estrada. Um arraial de carrinhas brancas, arrasta-se em marcha lenta com as equipas que formigaram durante a abertura do novo trecho da auto-estrada. O ruído dos motores fere o espaço como uma mordedura mecânica. Alguns dos homens agitam-se, espojam-se e fazem alguma grita. Cantam uma música popular. Era a hora da liberdade. Com a chave ferrugenta e depois de desapertar uma corda, Tiago abre o palheiro e passa o portal do tempo. As pedras de granito como um arco, rodeadas pelo pontilhado do xisto, ungem Tiago. Entra como um iniciado. A sensação térmica invade-o. No interior do palheiro o silêncio é total. Do lado de fora a folha-de-flandres estala. O sol ainda batia forte, como um hissope de luz.
A mão de Tiago retira o panfleto amarrotado do bolso, abre o papel de offset encarquilhado, observa-o novamente e recomeçam os acessos de somatização. Procurava entender. Não condenar. A sua paixão estava à prova como uma fotocópia de uma fotocópia. A única maneira de resolver aquela crise era enfrentar o problema. O touro agarra-se pelos cornos. Tiago, de olhar esbugalhado, olhava o panfleto como um ícone religioso, sentou-se no chão e ficou naquele pensamento mágico até cair a noite. Tinha apanhado ar suficientemente. Alisou a imagem amarrotada, ressuscitando a imagem com cicatrizes. Juntando todos os bocados dos acontecimentos que se passaram naquele mês, os pedaços partidos de uma porcelana mental, como o ritual Kintsugi; os métodos da marcenaria dourada do Japão, aplicados a objectos partidos, quando colados com ouro.