Auto-estrada XVI

XVI

Era pela hora da cotovia e Tiago entreolhava Solange que adormecera, faz uma persignação mental, e olha as mãos gretadas e empoladas do dia anterior de trabalho. Sentia-se sujo, ainda mais sujo quando pensava na sua mente brilhante, agora condenada a cargas e descargas num part-time no shopping; era época de saldos, uma loucura que o deixava a somatizar durante o sono, e tinha insónias. Era por vocação um homem culto, tinha deixado o estado da barbárie do animal natural que era o Homem depois de longas etapas de educação. Tinha-se feito pessoa, mas agora  apesar de se sentir uma pessoa, tinha dúvidas se valeria a pena. Levantou-se para mais um dia fantástico na logística. Procurou no armário um novo jogo de roupa, escolheu as cuecas e as meias, vestiu-se atrás do biombo para onde caminhou nu e lentamente, na luz amarela do candeeiro. Há muito que o dinheiro da redundância se evaporara, tinham passado dezoito meses; a auto-estrada tinha sido um logro. O cientista matemático frustrava-se, ainda não tinha levado com a maçã de Newton na tola. Tinha a sensação, e o medo, de se tornar invisível como o mundo da matemática que tanto prezava, era um modo diferente de ver o mundo, de o construir, mas por agora tendo como utilidade a folha de excel e o controlo de stock de grandes caixas de cartão. E assim de figura hirta, com as finanças nas últimas, aguardava a queda da maçã que o resgatasse daquele deserto, num país que apesar de fantástico, reinventa os seus pobres. Olhou mais uma vez Solange, não a acordou mas precisava de uma palavra para fazer uma investida contra aquele dia, algo simples e directo, lacónico de certa maneira. Desnorteado caminha sem pequeno-almoço para o armazém, enquanto giza e apaga os velhos acontecimentos que lhe estilhaçam os sonhos. Alguns meses se tinham passado desde a reunião familiar em Agosto, a substituição das telhas do telhado no palheiro, que assim tinha sido coroado com folha-de-flandres, e o resgate do velho e oxidado tractor – que Solange pintou de branco esmalte, sem pensar muito na ferrugem que o cariava debaixo do branco da tinta. Tinha custado uma pequena fortuna toda aquela tinta. Ela pensava em vender o tractor para uma empresa de decoração, se o pai de Tiago lho desse. Não tinha contactos poderosos, tinha feito uma mediana tournée no norte do país; parece que estavam ambos a ser roubados aos poucos. E ela vinha com algumas especulações que poderiam vir-lhe a calhar a ele, como ouro sobre azul, e para ela como um paraquedas dourado.

 

– Confirmas, confirmas, ou é uma ideia? Disse Tiago

– A meu ver – prossegue Solange – posso fazer as minhas danças burlescas no estrangeiro, estou a aguardar que algum produtor se identifique com o meu trabalho, se o meu actual número tiver aprovação, consequentemente, o que se seguirá é um contracto – responde e termina o copo de vinho, que segura na mão.

Tiveram contacto visual e entendiam-se, partilhavam o tremor violento das pequenas brechas da esperança com aquele vinho de três euros e meio do hipermercado.

– E quem é esse contacto milagroso, algum chulista? Indaga.

-Oh Não! É uma amiga que é actriz de teatro, ela é estrangeira, faz operetas e tem contactos fantásticos para freelancers, que vão a mil e um festivais. Mas há uma coisa que te quero dizer, vou fazer outro show no clube, tem de ser – disse telegráfica. 

– A sério? Retorquiu cruzando os braços no peito – As pessoas não sabem que nós os dois andamos de qualquer modo. Enquanto pensava, quis virá-la de borco para a varanda e possuí-la por detrás ali mesmo, sordidamente, com a esperança de que os vizinhos os descubram naquele aquário de maus hábitos. 

– Pois, custa imaginá-los a olhar para mim e babarem-se, mas esta bailarina veio para conquistar e brilhar! – Sentindo o tesão de Tiago a emergir da fazenda das calças. Este virou Solange de borco, como tinha imaginado segundos atrás, na escuridão da varanda e enfiou-lhe o pénis apesar de um fio de gelo que vinha da marquise.

 

Vinte e quatro horas depois, dirigem-se os dois para o clube na álgica noite de Novembro, tiritando, caminhando urgentemente em direcção aos radiadores do espaço de cultura. Sobem um grande escadório em granito do solar seiscentista adaptado em espaço de lazer, tocam à campainha ofegantes. Uma porta abre-se com um hálito húmido de calor e o cheiro maltado da cerveja. Solange é recebida como uma heroína, ele é recebido com desconfiança. Da surpresa inicial o programador do clube passou aquele inesperado momento para detrás das costas, adaptando-se às regras da civilidade, fazendo um esforço psicológico para apagar da sua mente, com um sorriso, aqueles dois. Ela era sem dúvida um petisco. Mas estava tomada. Como o camarim era uma caixa de fósforos, onde se acumulavam mil e um objectos, Tiago achou por bem retirar-se do clube, invadido por um incómodo pânico no estômago, pois, ainda faltava uma hora e meia para o espectáculo; deixando Solange maquilhando-se, despegando-se das suas mãos como uma lapa. Sai da sala, com algumas personagens de assombro que conhece mirando-o, e observa o patíbulo onde se vai desenrolar o sacrifício sensual de Solange, naquele momento, em acelerada preparação de cenário, dois funcionários trabalham com o coração nas mãos e o suor pespegando-se na testa.

 

Parte XVI do Conto Auto-estrada. Ver mais aqui

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Paulo Seara (1981) natural de Vila Real. Licenciado em Animação e Produção Artística pelo Instituto Politécnico de Bragança em 2005. Escreve poesia desde 1999, tendo colaborado esporadicamente em várias publicações em papel ou online. Colaborando com o blogue Pomar de Letras no qual publicou poesias, contos, textos soltos e traduções, e Inefável – Revista em Rede de Poesia. Vive em Edimburgo, na Escócia, desde 2014. Em 2007 foi co-autor do livro Crónicas do Demencial, o Porquê do Síndrome Nilhoo, editado pela Corpos Editora. Publicou a colectânea de poemas Livro Daninho (Edições Bicho de Sete Cabeças, 2016), e Take Away (Edicões Bicho de Sete Cabeças, 2017), ambos os livros estão disponíveis para download gratuito em smashwords.com. Para além de poeta Paulo Seara é artista visual desde 2005, tendo realizado mais de uma dezena de exposições. Os conteúdos de artes e letras produzidos por Paulo Seara podem ser observados em: https://www.facebook.com/prseara/ .

O renascer da arte a brotar do Interior e a florescer sem limites ou fronteiras. Contos, histórias, narrativa e muita poesia.

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