Eternamente à sombra da Lei 30/2000

No âmbito dos comportamentos aditivos e dependências parece que continuamos em 2000, ficamos presos a este diploma legal fantástico que é a Lei 30/2000 de 29 de novembro. Esta lei define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a proteção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica. Esta é uma lei que muda paradigmas e mentalidades tanto em profissionais como em consumidores. Deixamos de encarar quem consome estupefacientes e substâncias psicotrópicas com criminosos com punição legal, mas como pessoas que precisam de tratamento, tais como os doentes com outras patologias. Isto é, por si só, um grito evolutivo enorme, um grito de cidadania, um grito de promoção de direitos humanos. Pois é, é de direitos humanos que estamos a falar. Direitos de pessoas que são portadoras de um problema de saúde que precisa de ser tratado. Aqui, começa a maior particularidade, falamos de doentes que, na sua maioria não querem ser tratados, que têm uma série de outras doenças associadas e que acalmam, muitas vezes, as suas dores com consumos de drogas, criando um ciclo comportamental difícil de contrariar. A outra particularidade é que são doentes que, quando se querem tratar já estão sozinhos, não há famílias de suporte, quase não há fatores de proteção e sobejam fatores de risco. Quando se tenta fazer um balanço entre risco associado ao consumo e prazer, em geral, vence o prazer porque é imediato. Se não houvesse prazer no consumo de drogas, não nos preocuparíamos, simplesmente porque ninguém consumiria! Entender o modo de pensar de um indivíduo que consome drogas é um desafio constante. É um desafio para os profissionais do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências) que foram treinados, receberam formação de elevada qualidade e especificidade. Estes profissionais estão à espera, há já duas legislaturas por uma definição na sua intervenção, na sua organização interna, nas suas competências e na sua estrutura. Duas legislaturas…

Na comemoração dos 20 anos da Estratégia Nacional Contra a Droga, em maio passado, a Ministra da Saúde, Marta Temido, prometia aos profissionais e aos doentes uma clarificação da organização dos serviços de intervenção nos comportamentos aditivos e dependências até ao final desta legislatura, “claramente antes do final da legislatura” disse. Pois, não cumpriu, continuámos todos na mesma situação sem resolubilidade à vista.

Estamos presos à Lei 30/2000 para nos continuarmos a mostrar mundo fora. Continuam a vir comitivas a Portugal, ao SICAD, ouvir falar e levar aprendizagem sobre o chamado “modelo português”. Qual modelo? Aquele que se degradou desde a extinção do IDT (Instituto da Droga e da Toxicodependência) em dezembro de 2011? Aquele modelo no qual se experimenta, desde 2012 até hoje, uma integração falhada nas cinco ARS’s (Administrações Regionais de Saúde)? O PSD extinguiu o IDT quando extinguiu vários institutos públicos, depois veio o PS e experimentou a integração nas ARS’s. Aumentou assim a burocratização dos procedimentos administrativos e de gestão, que se foram letificando até ficarem inábeis. Os profissionais têm apresentado propostas de revisão da estrutura do SICAD, propostas fundamentadas, com audições na Assembleia da República recentemente. Foram sendo transmitidas diversas preocupações quanto à integração da vertente operacional nas ARS’s, verificando-se uma crescente desintegração das vertentes da dissuasão, da prevenção, da redução de riscos, do tratamento e da reinserção, com impactos negativos na capacidade de resposta dos serviços públicos de toxicodependência e alcoolismo. É da articulação destas vertentes que o sucesso da intervenção depende.

Muita coisa foi mudando desde 2011, o nome das unidades locais de intervenção, algumas práticas profissionais vão necessitando de reciclagem, há um elevado número de Novas Substâncias Psicoativas, há um aumento enorme das dependências sem substâncias (jogo, sexo, compras, internet…), há alteração dos padrões de consumos com predominância dos policonsumos, há um aumento das listas de espera para acolhimento nas Equipas de Tratamento, há um aumento das listas de espera para desabituação, há uma crescente desmotivação nos profissionais especializados, há um sentimento de que algo não funciona como antes e que vai passando para os doentes. Sim, eles são dependentes de algumas coisas, mas não, não são estúpidos (perdoem a expressão). Os doentes percebem que o sistema ainda funciona pela dedicação de quem os trata, mas quem os trata precisa de organização e de orientação.

No presente ano, o SICAD apresentou uma proposta de reorganização dos serviços com intervenção em comportamentos aditivos e dependências, com o reforço no seu papel de monitorização e coordenação nacional e uma maior autonomia das unidades de intervenção locais, que chegou a ser aprovada financeiramente. Mas a preocupação atual deste Governo são as eleições e deixar tudo como está. Infelizmente não há vontade política…

É assim um país com um modelo de excelência, perdido num mar de promessas e desilusões. Muitos técnicos foram saindo, entendo-os, poucos conseguimos manter a resiliência, somos cada vez menos, há cada vez menos médicos, menos psiquiatras, menos psicólogos, menos enfermeiros, menos assistentes sociais nas unidades de intervenção locais. Atualmente, os médicos são, na sua maioria, de medicina geral e familiar, tarefeiros recrutados para dois ou três dias, com pouca formação, que acumulam estas funções com bancos de urgências em unidades hospitalares.

As repercussões ao nível da saúde pública com o aumento das infeções, da disfuncionalidade familiar, da sociedade com o aumento da marginalidade, pobreza e criminalidade e da economia com o aumento do desemprego e dos apoios sociais afetam todos os territórios, mas os do interior em particular, piorando a qualidade de vida na comunidade. Somos os primeiros a perder técnicos, somos os que ficamos mais afastados das oportunidades formativas que se vão centralizando nas cidades do litoral, somos os que estaremos na linha da frente no caso de haver propostas de encerramento de unidades de intervenção locais. Porque é sempre assim… a população é menor, a incidência da problemática até pode ser menor, mas as consequências são bem mais devastadoras. Deixou de haver um padrão assistencial comum, uniforme e consistente. É fundamental garantir a cobertura universal para todos os cidadãos, a equidade e facilidade de acesso aos serviços de tratamento de comportamentos aditivos e dependências, protegendo contra a discriminação e estigmatização, impedindo as assimetrias regionais e locais na prestação dos melhores cuidados. O problema das adições deixou de ser uma prioridade social e política há tempo demais.

Defendo um modelo que passe por um serviço especializado, com base num modelo integrado das várias vertentes de intervenção, vertical, coeso, acessível e de proximidade, recolocando o indivíduo como central e assente em valores como o humanismo, cidadania, territorialidade, integralidade, conhecimento e inovação.

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Psicóloga, de 44 anos.
É natural de Resende, onde reside, trabalha em Lamego.
Candidata independente às Eleições Legislativas pelo Bloco de Esquerda.

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