Quando nasci, a democracia era ainda jovem tinha apenas, há menos de seis meses, completado nove anos. Desde então temos crescido juntos e sempre tive a fortuna de saber o que é viver com a sua liberdade. Lembro-me de que na primeira de escassas vezes que saí do país tive de passar pelos postos fronteiriços da raia espanhola, primeiro para sair de Portugal e depois para entrar em França. Não foi nada demais, todos éramos já membros da comunidade, apenas uma rotineira inspecção, de ambas as vezes, e lá seguimos viagem. No regresso vim de avião para cujo embarque tive muito menos rodeios do que aquando neste século em viagem para e de Bruxelas. Sinais dos tempos e das suas atrocidades.
Quando nasci, havia comboio em Trás-os-Montes, havia escolas nas aldeias, infantários; havia mais tribunais, servindo mais proximamente a sua população; num reles casebre de contraplacado o hospital tinha valências que não lhe deixaram agora e, ainda tivemos de batalhar para que o helicóptero não partisse, como as valências, para um lugar remoto donde a proximidade e eficiência na resposta de urgência eram mais do que óbvias falácias, mas que se escondiam atrás dos números de quem não nos vê como pessoas, apenas como um fardo descartável; quando nasci também havia mais gente e mais empregos, lembro-me por exemplo duma grande empresa nacional da indústria láctea… Quando nasci não havia cinema, esperámo-lo muitos anos até vir, hoje já não há outra vez, isso agora fica até noutro distrito.
De quando nasci não tenho muito mais do que memórias fugazes de uma vila que era muito mais e “maior” do que a cidade que é hoje. Na Rua da Estação, que nunca assim se chamou, esmorece, ao fundo, devoluto o edifício que lhe cedeu a alcunha. O que eras, e o que não és mais, lamento frequentemente quando caminho pelas tuas ruas despovoadas. Vejo o enorme edifício, mais um, que nasceu no lugar de uma velha casa (que se não logrou restaurar e requalificar) cuja beleza enchia o olho de quem passava e que estava tão abandonada como os apartamentos da besta que ergueram em seu lugar, mas aquela tinha história e lendas que faziam sonhar e acreditar, este o que tem?
Apartamentos vazios como os demais? Vejo outros edifícios, tal como a estação, devolutos, e imagino a vida que teriam mesmo antes de quando nasci, as gentes que empregariam e os filhos que criaram. Ouço as saudosas memórias de quem viveu contigo uma outra vida, cheia e alegre, quando as tuas ruas não eram desertos onde esporadicamente passam carros rumo a outras paragens tão solitárias como tu. Mas tenho esperança. Tenho a democracia. Tenho esperança na democracia. Tenho na democracia todas as minhas memórias.
Nasceu em Macedo de Cavaleiros, Coração do Nordeste Transmontano, em 1983, onde orgulhosamente reside. Licenciado em Línguas, Literaturas e Culturas, publicou poemas e artigos na extinta fanzine “NU” e em blogues, antes de editar em 2015 o livro-objecto “Poesia Com Pota”. Português de Mal e acérrimo defensor da regionalização foi deputado municipal entre 2009-2013.
Este autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.