Ainda no rescaldo da nossa, agora, quinquagenária revolução, um jovem, que fugira à guerra colonial, escrevia:
“Vivemos tantos anos a falar pela calada
Só se pode querer tudo quando não se teve nada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão, habitação, saúde, educação
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir”.
A PAZ
A bordo do Niassa, também em Abril mas em 1961, partiam os primeiros soldados para impedir a inexorável queda do império. Oficialmente, morreram 100 mil civis, 10 mil militares portugueses e deixaria outros 20 mil inválidos. Para trás, ficariam os olvidados da história de um imperialismo colonial multicentenário, além de multicultural e multimiscigenado, e, não esqueçamos, multimilionário. Oficialmente, estão identificadas 162 mortes pelas mãos da polícia política e cerca de 30 mil presos políticos. Na realidade, nunca conheceremos os números reais das atrocidades, mas nunca, nunca esqueceremos. Hoje, o serviço militar não é obrigatório, e é obrigatório que assim permaneça. O orçamento de estado da defesa continua a ser maior que o da cultura, podemos pintar os submarinos de amarelo e os canhões de azul enquanto artistas fingidores brincam à luta do dia a dia, e promotores da dor se debatem em agonia nas margens do rio lucro.
O PÃO
De finanças canalizadas para a guerra, o cenário nacional de pobreza convivia com a proibição de greves e manifestações, além do controlo sobre os sindicatos, isto enquanto as crianças brincavam ao trabalho infantil. Hoje, celebramos a existência do salário mínimo, o 14º mês e a licença parental. Mas hoje, também, lamentamos o carácter minimalista do salário mínimo, a precariedade dos recibos verdes, sejam eles verdadeiros, falsos ou daltónicos, e a osteoporose da autonomia financeira da terceira idade, sócia maioritária da corporação farmacêutica. Lamentamos a irrefutável vaga migratória da força laboral jovem, qualificada e não qualificada, para o estrangeiro, que não rima só com mais dinheiro, rima com carreiro e carreira, cansada a formiga do sentido contrário e lá foi ela habitar outro formigueiro.
A HABITAÇÃO
Existiam 600 mil famílias em bairros de lata, sem condições higiossanitárias, sem água potável, electricidade e saneamento básico. Depois, veio a instituição do direito básico à habitação, o esforço pela erradicação das barricadas de barracas, a propriedade horizontal e as soluções de crédito. Mas também, vieram os fantasmas que auguram a perda da habitação para a banca ou para os senhorios, porque o mercado e a especulação são livres, porque despejar famílias é mais fácil que despejar o bolso dos mesmos senhorios que bancam a bancarrota alheia. Para lá do direito à habitação, fica a questão da possibilidade de oportunidade à habitação e o direito à propriedade, que fazer com as famílias desalojadas pelo alojamento local e as habitações devolutas? E fica a questão sobre a casa que é de todos nós, humanos, desumanos e não só, a casa com água potável que uns acham inesgotável e outros teimam em transformar em esgoto, enquanto ainda estupefactos pela nossa grandiosidade, assistimos anestesiados à sua desertificação. Fica a questão sobre a reflorestação em massa que deve ser feita emergencialmente, pois não podemos aguardar por escrever um livro e fazer um filho. Porque nem todos são escritores, nem todos são procriadores mas todos, sem excepção, somos habitantes desta casa que adoece e padece em silêncio. Sem planeta para viver, não existe nada para defender.
A SAÚDE
Lembras-te quando, em vez de taxas moderadoras, existia o atestado de pobreza que dava acesso aos serviços de saúde facultado pelo estado, naquela época do novo? Lembras-te da mortalidade infantil e materna e da proibição da interrupção voluntária da gravidez? Sabes que as consultas prévias destas não existem na Guarda? Sabes enumerar as valências da ULS, temporária ou permanentemente fechadas, além da maternidade? Celebremos a existência do Serviço Nacional de Saúde enquanto questionamos a sua privatização, enquanto questionamos a promiscuidade dos seus profissionais entre os sectores público e privado, paralela ao crescimento vertiginoso dos seguros de saúde. Exijimos a saúde física e mental, individual e colectiva, a preventiva e a paliativa, a social e a institucional, sem nunca esquecer, nunca, que além de um direito individual é um dever colectivo de a proporcionar, tal como:
A EDUCAÇÃO
Laica e gratuita, porque os direitos assim o são, gratuitos. insistimos, gratuita, seja ela básica, elementar, secundária ou superior. Se havia fartura era de tortura e censura. Nem toda a leitura era permitida e dançava-se à volta de fogueiras alimentadas por livros, porque estes eram as novas bruxas, alimentavam a esperança e aliviavam a sede de subversão da massa crítica, amassada carinhosamente pela polícia política. Hoje, celebramos a erradicação do analfabetismo mas sem esquecer que o acesso ao ensino superior ainda é, apenas, virtualmente acessível a todas/es/os. O sucesso no ingresso não implica o sucesso no suplantar das adversidades económicas de estudantes deslocadas/es/os, ou não. Deslocadas/es/os, ficaram 100 estudantes que perderam a proximidade da Escola de São Miguel. Existindo a possibilidade das instalações serem ocupadas pelo comando nacional da UEPS da GNR: trocam-se estudantes por militares, quem dá mais? Pela proximidade do poder local, podemos acessivelmente escrutinar, construtivamente participar, activamente responsabilizar, assumidamente alimentar a diversidade, promovê-la, defendê-la e exercê-la, a ela, à cidadania e à democracia, isto desde a mais tenra idade. Só há liberdade a sério quando houver,
LIBERDADE DE MUDAR E DECIDIR
De tal maneira que, muito recentemente, uma parte da população decidiu mudar e dar poder à extrema-direita, que vai direita à ameaça de alguns direitos pelos quais reivindicámos, gritámos, lutámos e ganhámos. Após a invisibilidade das mulheres no 25 de Abril, seguiram-se conquistas memoráveis, passando pelo próprio direito a votar. Lamentavelmente, o número de mulheres eleitas nas últimas legislativas diminuiu, e discute-se novamente o direito reprodutivo da mulher. É triste, é desconcertante, mas além de tudo, é inadmissível. Questionam-se os direitos dos imigrantes, local e globalmente. É triste, é desconcertante, mas além de tudo, é inadmissível. Questionam-se os direitos da comunidade LGBTQIA+, sem mais nem menos. Em 2024, séc. XXI, ainda são tema de conversa e postos em causa o lugar e papel da mulher e todas as outras questões da igualdade de género, a existência de racismo, xenofobia e homofobia. É triste, é desconcertante, mas além de tudo, é inadmissível. Não somos mais uma gota no oceano, somos a gota que faz transbordar o rio. Passados 50 anos, urge uma nova revolução, tão necessária quanto a sua antecessora, tão profunda quanto a sua antecessora, e , pelo menos, tão, mas garantidamente mais, durável, na qual jogamos todas as nossas fichas na cultura e na educação. O que devemos questionar, todas/es/os sem excepção, é o que ainda falta fazer, o que falta melhorar, o que falta consolidar de tudo o que foi feito e permitido fazer pelo 25 de Abril de 1974. O que devemos relembrar, todas/es/os sem excepção, é que a nossa democracia foi implantada em 1910 mas ela não celebra 114 anos em Outubro. E isto, em homenagem a todas as pessoas que lutaram pela liberdade que aclamamos hoje, em homenagem a todas/es/os as/es/os que estão para vir. Esperando que não tenham que lutar pela liberdade que aclamaremos amanhã, porque temos esse direito, e, além de tudo, a responsabilidade e o dever. Por uma sociedade antifascista, feminista, LGBTQIA+, ambientalista, pela cultura, antirracista, inclusiva e onde só, só há espaço para a liberdade.
FASCISMO NUNCA MAIS!
LIBERDADE, SEMPRE!
Coletivo apartidário, antifascista, feminista, LGBTQIA+, ambientalista, pela cultura, antirracista, inclusivo onde só existe espaço para a Liberdade 📍Guarda