Apocalipse dos sonhos

“Nestes dias insanos, procuramos nas imagens televisivas, nas notícias de jornais ou revistas, razões que possam justificar o injustificável: um país invade outro país, os senhores da guerra matam, destroem, impõe-se à força, esmagam sonhos e projetos, reduzem a pó e cinzas o que outros construíram.”
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Nestes dias insanos, procuramos nas imagens televisivas, nas notícias de jornais ou revistas, razões que possam justificar o injustificável: um país invade outro país, os senhores da guerra matam, destroem, impõe-se à força, esmagam sonhos e projetos, reduzem a pó e cinzas o que outros construíram.

Analistas, e outros que tais, desdobram-se em explicações que possam amenizar o sobressalto causado pelas notícias que vão dando conta de escolas, lares, fábricas, prédios, centros culturais destruídos, projetos que ficam por realizar. E, no final, tudo parece desprovido de sentido, talvez a guerra só se possa compreender depois, nos livros de História, nos documentários, nos compêndios. Nada pode justificar as imagens de mulheres, crianças, velhos, animais de estimação, todos tentando escapar à máquina da guerra que se abate sobre o país. São famílias incompletas, forçadas a partir, separadas à força. Alguns dos que ficam nunca pegaram em armas, e perguntamo-nos onde irão buscar a energia que lhes permite resistir e até quando poderão fazê-lo.

Mulheres carregadas de quase nada atravessam fronteiras e os seus olhos espelham as dores de todas as horas. Crianças ainda vivendo a aventura do momento, ingénuas no entendimento da tragédia que estão a iniciar ou incrédulas com as voltas que a vida dá, apresentam rasgos de esperança. Velhos esforçam-se por acreditar que ainda terão futuro depois deste último golpe. A multidão carrega sonhos, medos, frustrações; são vidas interrompidas, em suspenso. 

A força dos invasores recorda-nos outros algozes também eles comandados por déspotas que se tinham por imortais e invencíveis. Mas não se julgarão todos os ditadores imortais? Seriam capazes de tais ímpetos belicistas se tivessem absoluta noção da efemeridade da vida e se sentissem, por um momento que fosse, a possibilidade do fim? 

Falar sobre a guerra é discorrer sobre o sofrimento, a morte, a destruição. Não há heróis senão aqueles que a evitam, ou que lhe põem fim. Todos os outros são atores, voluntários ou forçados, num palco cujo cenário só pode ser absolutamente despojado, pois todos os horrores podem acontecer durante essa triste encenação. E nós, espetadores incrédulos, sofremos, de longe, a certeza de uma desumanidade que se impõe.

E porque uma guerra ilustra todas as guerras, as palavras de Paulina Chiziane, no seu romance Ventos do Apocalipse, aquando da guerra civil em Moçambique, ganham um novo sentido: “Caminham. Os corpos vivos marcham como sepulcros, como duendes, como sombras mortas. Arrastam consigo todos os haveres que lhes restam, para o novo mundo, para o recomeço da vida ou para o prolongamento da agonia. (…) A terra recebe o pisoteio imperturbado, com a mesma insensibilidade dos homens que caminham sobre ela. Cada passo em frente é um coval de areia em cada sonho, uma morte viva para a terra que deu a vida e o mundo.  Ninguém olha para trás, todos desejam esquecer o passado. Tão-pouco olham para a frente. Reina a insegurança, o que haverá à frente? Animais e homens caminham de olhos poisados no chão. A solidez silenciosa da terra é segurança maior, é certeza. A ilusão está à frente, nos caminhos de amanhã.” (Caminho, p. 149)

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Maria Teresa Nobre Correia, 53 anos, casada, natural de Tortosendo, onde resido atualmente. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, mestre em Estudos Literários e Culturais, doutorada em Literatura Moçambicana, professora do ensino secundário desde 1990, divido o meu tempo entre as aulas, as leituras e os múltiplos desafios que se me vão colocando. Feminista, voluntária e ativista pela defesa dos direitos humanos e dos animais, acredito que o mundo pode ser um lugar melhor e mais justo.

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