O preço da seriedade num país seduzido pelo populismo

Fazer política no meio do ruído da extrema-direita é resistir com responsabilidade. Porque razão se sobrepõe tantas vezes o ruído aos factos?

Em tempos de negacionismo e desinformação, a política séria enfrenta desafios sem precedentes. A campanha das eleições legislativas de 2025 confirmou-o: o ruído da extrema-direita sobrepõe-se aos factos, e a responsabilidade democrática perde terreno para o espetáculo. Como podem os partidos de esquerda fazer face a esta deriva sem pôr em causa a ética e o debate substantivo?

Num ecossistema mediático obcecado com o conflito e a viralidade, a substância perde terreno para a encenação. Esta não é uma questão marginal, é o sintoma de uma democracia onde o populismo da extrema-direita prospera precisamente porque substitui propostas por performance, e debates por frases feitas carregadas de ódio.

Quando a imprensa trata a política como um reality show, ao conceder mais importância aos insultos do que aos programas eleitorais, normaliza a ideia de que gritar mais alto equivale a liderar. O Chega beneficia diretamente desta lógica, como prova o tempo de antena desproporcional que recebe.

A política séria já não conquista audiências?

No distrito da Guarda, a campanha do Bloco de Esquerda percorreu a cidade da Guarda, Gouveia, Vilar Formoso, Benespera, Gonçalo, Manteigas, Seia e Trancoso. Ouvimos histórias que revelam um país profundamente desigual. Estivemos com inúmeros idosos para quem uma reforma de 400 euros não é suficiente para pagar a renda, a medicação e as despesas básicas. Falámos com uma população que se sente esquecida no interior do país. Ouvimos mulheres que sustentam os filhos com um salário mínimo e outras que estão há dois meses sem receber ordenado. Pessoas para quem os transportes públicos escasseiam e, por vezes, até são inexistentes. Testemunhámos reformados que precisam de continuar a trabalhar até ao fim da vida, pois o direito ao descanso lhes foi negado.

Este é o retrato de um país onde 73% dos jovens universitários consideram emigrar, e onde a verdadeira fronteira não é geográfica, mas entre quem lucra com a desordem e quem paga por ela. É neste vazio que prosperam partidos como o Chega que utilizam o voto de protesto como arma contra a democracia. Sem propostas para a saúde, a educação ou a habitação, limitam-se a culpar imigrantes e minorias, enquanto seguem impunes perante toda a desordem que promovem. Jovens repetem discursos racistas, machistas, homofóbicos e xenófobos, para quem a Revolução de 25 de Abril, que pôs fim a uma ditadura de 48 anos, pouco significa. A informação que consomem está carregada de ódio e manipulação, disseminada em vídeos no TikTok, no YouTube e noutras redes sociais. A desinformação viraliza, e os media, em vez de a combater, normalizam-na, ao trocar a ética jornalística por clickbait.

O resultado é um ambiente tóxico, onde gritar mais alto é mais eficaz do que apresentar argumentos e a agressão a um colega de trabalho imigrante ou a um amigo LGBT não é vista com estranheza. E qual é o custo? Uma democracia enfraquecida, como atestam os 26,5 milhões de euros gastos num acto eleitoral apenas 11 meses após a última eleição legislativa. Os verdadeiros responsáveis, os que falharam nas políticas públicas, desinvestiram nos serviços e alimentaram desigualdades, continuam ilibados, beneficiando do crescimento do liberalismo e da extrema-direita.

O suposto voto de protesto no Chega está a empurrar o país para o precipício. Não serão as políticas populistas e demagógicas, baseadas em estereótipos e inimigos inventados, a resolver a crise. Pelo contrário, apenas agravam os problemas estruturais e impossibilitam a adoção de soluções reais.

Conversa aberta sobre os desafios colocados à população LGBT no interior. Foto: Tiago Resende

Enquanto a direita distribui máscaras de vilões, a esquerda expõe as estruturas do poder. O Bloco de Esquerda fez política com responsabilidade e apresentou propostas concretas para enfrentar este cenário. Recusou o caminho fácil do ódio e do medo. Não recorreu à vitimização nem à manipulação emocional para ganhar tempo de antena. Debatemos o futuro da Serra da Estrela, o desenvolvimento sustentável do interior, a coesão territorial, a mobilidade, as reformas, os direitos laborais, a fixação dos jovens no interior, a representatividade e o orgulho LGBT. No entanto, num ecossistema mediático que premia o conflito, a seriedade torna-se invisível.

Como Mariana Mortágua muito bem disse: “A viragem à direita no mundo, na Europa e em Portugal leva consigo muito mais do que votos e deputados da direita, leva também esperança e arrasta a ideologia do medo e do ódio. Os tempos são difíceis e não escolhemos os tempos que calhamos viver.”

Ainda que o futuro a que aspiramos esteja em risco, continuaremos a construir alternativas, porque um país justo não se ergue com bodes expiatórios, mas com políticas que dignifiquem todas as vidas.

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Jornalista, escritor e podcaster. Activista ambiental, pelos direitos LGBT e antifascista. Integra a associação Let's Swap e o coletivo Venham Mais Cinco, com os quais colabora em iniciativas de impacto social e cultural.

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