Uma história de Natal e uma filhós para o caminho

1,250 kg de farinha, 30 g de fermento de padeiro, 2 laranjas docinhas, 10 ovos, 1,5 l de azeite, 1 l de aguardente, 1 colher de sopa de sal.

O canto da lareira já há uns bons dias que está cheio, e no presépio, com musgo fresquinho, até o Menino deita um olho à porta. Pela janela espreita-se o caminho, a panela de ferro ao lume, vai cantando à espera das batatas, do bacalhau e das couves que parecem impacientes no alguidar ao lado da chaminé. Nas melhores travessas, esperam o arroz doce, as farófias e um bolo rei.

Dissolve-se o fermento e o sal numa pouca de água morna, partem-se os ovos para um alguidar. Batem-se e junta-se-lhe pouco a pouco o azeite aquecido, batendo sempre.

Alisa-se o avental e um ou outro cabelo mais rebelde que insiste em soltar-se do chinó. À volta tudo está em suspenso, como se o tempo fosse cúmplice da espera. Dá-se mais uma varredela às escadas, triste desculpa para mais uma espreitadela ao caminho. Destapa-se a panela e deita-se-lhe mais uma pouca de água, acalma-se a fervura, mas acentua-se o silêncio. Para o lume vai mais um cavaco.

Junta-se o sumo das laranjas, a aguardente e o fermento. Em seguida começa a juntar-se a farinha, em pequenas porções, batendo à mão.

Lá fora, fecha-se a porta de um carro, depois outra e depois outra, passos pequeninos apressados que sobem, por fim, as escadas de pedra. Abraços e palmadas nas costas, beijinhos repenicados e vozes que empurram o silêncio, o tempo e a espera para fora da sala. A panela ao lume volta a cantar, e a mesa fica maior e mais pequena ao mesmo tempo, não há explicação que consiga justificar este fenómeno.

Geralmente esta massa, que deve ficar com a consistência da do pão leva cerca de meia hora a amassar. Polvilha-se com farinha, embrulha-se com um cobertor e deixa-se a fintar ao pé da lareira, com o cuidado de ir girando o alguidar para que lhe dê o calor em toda a volta.

Na mesa troca-se o queijo, o pão e as azeitonas por pedaços de conversa que teimam em ficar inacabados. Escorrem-se as batatas que hão de chegar à mesa bem regadas por azeite novo e por ternuras antigas, acompanhadas de mais algumas rugas na testa e uns poucos de cabelos afogueados que se soltaram, uma vez mais, do chinó. Quase tão doces como as farófias e o arroz doce que tomaram conta da mesa e daquele buraquinho que em realidade já não existia.

Trazem-se as trempes e a frigideira com azeite, que estas filhoses são das antigas e fritam-se à lareira, entre gargalhadas, histórias de agora e do antigamente. Em semicírculo, dispõe-se a cadeia de produção, com as diferentes fases: estender e deitar na frigideira, dar-lhe a volta e tirar, polvilhá-las com açúcar e canela e provar.

“Não as comas quentes que ‘ópoi’ dói-te a barriga. A modos que o melhor é ir a fazer uma cafeteira de chá de mentrastes”

E, nesse ritmo arrastado de quem já se lembra de muito e já se esqueceu de outro tanto, chega o chá à mesa, que já foi posta de novo para a ceia, enquanto na lareira chia o azeite e as filhoses se amontoam nos tabuleiros.

Amanhã, volta o silêncio e a espera, mas enquanto a casa está cheia, é Natal!

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Em 2002 mudou-se para Berlim ao abrigo do programa Erasmus, acabando por residir e trabalhar na capital alemã durante 8 anos. Em Berlim exerceu diversas atividades ligadas ao jornalismo televisivo e à produção audiovisual, nomeadamente nas áreas de produção, edição e redação de notícias para diversos meios televisivos espanhóis como correspondente na agência de notícias Europainformación.
No Panamá, para onde se muda em 2010, assume o cargo de editora-chefe na delegação da mesma agência na América Central. Em 2012 recebe o Grande Prémio de Jornalismo do Panamá e o Prémio à melhor investigação jornalística pelo documentário: “Noriega, o juízo final”.
Regressa a Portugal em 2012 onde passa a desempenhar cargos relacionados com a produção artística em cinema, teatro e outros eventos de cariz cultural, de salientar: “O Efeito Isaías” (2015), “Jigging” (2015), “Ate ao Canto do Galo” (2016), “Carga” (2017).
Em 2012 co-funda a Maria Zimbro um laboratório criativo que procura impulsionar a arte e a cultura no interior do país.
Em 2017 desenvolve a plataforma Aqui há Beira, uma start up que cria uma solução tecnológica que oferece a agenda e a oferta turística do interior, criando pontes entre os turistas e a comunidade local.

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