“Matem os velhinhos”

Quis crer que já teria passado tempo mais do que suficiente desde o icónico cartaz “Por favor, não matem os velhinhos!”, para que o discurso desinformado e mentiroso por opção tivesse desaparecido da demagógica conversa anti-eutanásia, a qual se reveste quase sempre de dogmas religiosos e mentiras para a sua defesa, em desvirtude da sua incapacidade em encontrar argumentos para uma reflexão cabal e capaz. A verdade é que quem é contra a eutanásia, ou não sabe porque o é, ou o é por ideais religiosos. Nada contra quem o seja, desde que o seja informado. Ao ler as primeiras palavras da crónica de Henrique Raposo, para a Renascença, “Matar um idoso com Alzheimer não é “eutanásia”: é homicídio”, assaltou-me uma revolta imensa para com aquela verborreia mentirosa e tendenciosa que logo me deteve de ler o resto. A crónica de Henrique Raposo, que admito não conhecer integralmente, e outros discursos no mesmo sentido, de que a eutanásia se trata de um método de controlo da população e uma estratégia de limpeza da população idosa e doente, são conscientemente falaciosos em ambas as acepções da palavra, são cheios de palavreado, embelezado para cativar a atenção do destinatário, e, são enganadores porque, apelando a uma visão romantizada e de teor sentimentalista, procuram enevoar a ideia e a sua virtude, inebriando o julgamento, a causalidade e a legalidade.

Estes discursos “emocionados” sobre os perigos da medida, para a terceira e quarta idade, apenas tendem para o enviesamento da opinião pública, enquanto fogem à questão fulcral. A eutanásia não é uma forma de homicídio legal, nem uma conspiração para matar a população indesejada, trata-se de um direito humano, o direito a uma escolha consciente e digna. É uma questão de dignidade e direitos humanos! Trata-se da vontade de cada um e não de uma imposição de crenças e caprichos. Claro que não é qualquer um, “só porque lhe apetece” ou “coitadinho, está deprimido”, que pode optar pela eutanásia. Trata-se de um último recurso para um final digno e livre de sofrimento, casos extremos de dor e mal-estar que atentam contra a dignidade humana e o direito a poder escolher e à nossa liberdade. Pegando na questão da Alzheimer; o paciente tem de estar consciente da sua vontade, em plena posse das suas faculdades mentais. É, e tem de ser, uma escolha consciente e plenamente apoiada por uma equipa de médicos, aos quais cabe analisar e determinar sobre essa decisão. É uma medida que implica delicadeza e controlo intenso e que após a sua adopção terá de, e irá, ser devidamente implementada e apoiada. Ninguém quer brincar com as vidas de outrem.

Por vezes, existe uma certa guerra dentro de nós, entre o que queremos e o que podemos, aquilo a que temos direito. Ter o direito de o fazer, não implica o dever, a obrigação de o fazer. Apenas me dá a opção de poder decidir. Vetar a eutanásia, apenas porque achamos que está mal, está mal! Não estamos perante uma purga, estamos perante um direito, ninguém quer matar os velhinhos! Os velhinhos? Matem os velhinhos preconceitos reaccionários, mate-se a cobardia de esconder a evolução em dogmas imorais de receio sobrenatural e mate-se, de uma vez por todas, o medo.

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Nasceu em Macedo de Cavaleiros, Coração do Nordeste Transmontano, em 1983, onde orgulhosamente reside. Licenciado em Línguas, Literaturas e Culturas, publicou poemas e artigos na extinta fanzine “NU” e em blogues, antes de editar em 2015 o livro-objecto “Poesia Com Pota”. Português de Mal e acérrimo defensor da regionalização foi deputado municipal entre 2009-2013.
Este autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

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