Ocorre-me frequentemente esta interrogação poética de Sá de Miranda que, mutatis mutandis, poderá ser enquadrada nas mais diversas situações de incerteza e dificuldade: no amor, nas florestas, na política ou na epidemia. Assim, talvez seja oportuno trazê-la a lume para enquadrar reflexões e desafios que se nos parecem vir a colocar no futuro.
Desarrezoado amor, dentro em meu peito,
tem guerra com a razão. Amor, que jaz
i já de muitos dias, manda e faz
tudo o que quer, a torto e a direito.
Estamos confinados como o amor dentro desse peito. Jaz amor e afeto: faltam-nos cada beijo e abraço e sorriso e carinho que o confinamento e as medidas sanitárias aprisionam. Resta apenas a cal fria de quatro paredes (a quem as tem), sete dias sempre iguais e um olhar invulgarmente grave e inquieto.
Talvez o amor seja um estado de emergência. Quiçá estes dois conceitos tenham mais em comum do que alguma vez imaginámos – dado que ambos partem de desequilíbrios e outros pressupostos pouco materializáveis, geralmente extrínsecos e frequentemente inexplicáveis.
É uma corda-bamba e de resto a física diz-nos que tudo no universo tende ao equilíbrio. Se nas coisas do coração nos parece impossível analisar racionalmente essas idiossincrasias, na epidemiologia parece haver algumas respostas: o planeta está descompensado, as prioridades estão invertidas e as grandes potências mundiais são carros desgovernados.
Muitos dos ingredientes desta pandemia (silenciosa mas estrondosa) estavam já à vista de toda a gente. Da origem, sempre se desconsiderou tudo aquilo que milhares de estudantes e ativistas em todo o mundo, têm reivindicado sobre a urgência inequívoca de salvar o planeta, onde se inclui a proteção dos animais e espécies em risco (como, aliás, o pangolim). Do combate, revela-se agora a falta de investimento na investigação científica e a exposição do costume à soberania da indústria farmacêutica. Do rescaldo, será urgente repensar modelos e tratar este capitalismo enfermo, porventura sem recurso a fármacos mas experimentando outras vias mais bizarras e alternativas: por exemplo, com donuts – como os modelos que se têm afirmado em termos económicos no que toca a alternativas de desenvolvimento sustentável.
Não espera razões, tudo é despeito,
tudo soberba e força; faz, desfaz,
sem respeito nenhum; e quando em paz
cuidais que sois, então tudo é desfeito.
Vivemos com medo, em estado de alerta permanente. Alguns direitos – como a vida – estão em suspenso. E nós que tomávamos por adquirido esse Abril que ainda hoje incomoda tanta gente. E nós que saíamos à rua noite dentro julgando-a nossa, conhecendo cada pedra, sabendo cada palavra em cada muro, pensando em mudar o mundo.
Agora, numa pequena bolha apenas queremos pensar que, de alguma forma, tudo vai correr bem. Invadem-nos pensamentos nítidos da cadência do marear, do cheiro de certas ruas, da humidade dos primeiros dias de primavera, dos sorrisos luminosos do verão ou dos copos dourados de uma esplanada.
Depois, rebentada a bolha, a realidade entra-nos pela casa adentro: despedimentos, layoffs, violação de direitos, pão na mesa. Derrete-se a cosmética dos números e baixam-se as bandeiras de propaganda para ficarmos por fim com tudo a nu: Desemprego, precariedade, pobreza. Éramos felizes e não sabíamos mas estava tudo aqui, escondido, com o rabo de fora: o mundo virado ao contrário, a Europa colada a cuspe e o país preso a ferros.
No grande circo, alguns líderes mundiais desdobram-se em reuniões, cimeiras e task forces enquanto outros fazem só o seu número pedindo aplausos. Todos de olhos postos no que o oráculo Bloomberg lhes reserva para a Euronext, o Nikkei ou o Dow Jones. A Síria e o Mediterrâneo parecem ter desaparecido enquanto uma qualquer criança no mundo fechava os olhos, pensando deixar instantaneamente de existir.
Por cá volta o triste fado e os valores patrióticos – né, filho? – e todas aquelas metáforas sanguinárias e belicistas. Não, não vale tudo e a retoma não pode ser feita a qualquer preço.
Doutra parte, a Razão tempos espia,
espia ocasiões de tarde em tarde,
que ajunta o tempo; enfim vem o seu dia:
Diz-se por estes dias que o mundo lá fora será diferente quando voltarmos à rua. Taquipneicos e ingénuos, voltaremos a explorar esses lugares que hoje se nos afiguram mais longíncuos e oníricos.
Os dias terão por fim mais luz e mais cor. Por contraste, embarcaremos também numa sombria viagem pelos tenebrosos meandros da finança, onde a história tende a repetir-se: a apropriação de todo esse espetro visível como antídoto para a vermelhidão dos mercados e do ouro negro.
Com pressa de chegar à praia, mergulharemos na bolina dos dias úteis tentando manter-nos à tona perante tanta incerteza: o desemprego a escalar, as previsões do FMI, a velha receita austeritária e o retrato a sépia de uma sociedade moribunda de corpo exposto e intimidade comprometida.
Quando a tempestade amainar, esbracejando entre a vida e a quimera de recuperar o tempo perdido, perguntar-nos-emos se ficará realmente tudo bem e o que significará verdadeiramente tudo isso. Da Europa não parece chegar nem um bote salva-vidas: os corredores que Centeno e Lagarde habitam são bem diferentes dos nossos, das nossas casas e das nossas ruas. Ao menos não nos vendem a Ancara, como fazem para “estancar” a crise do mediterrâneo – e quanto valerá a nossa vida senão tanto como a de um qualquer migrante?
Não seria obviamente exigível que, por exemplo, os fundos de estabilidade e os mecanismos de estabilização e salvaguarda, desenhados noutras circunstâncias, fossem realmente capazes de responder a uma crise económica mundial sem precedentes. O problema é que esses instrumentos já não respondiam sequer eficazmente aos problemas correntes da União e de muitos dos seus estados-membros. Ora, num cenário em que o mundo está todo no mesmo navio e a Europa tem uma moeda única demasiado cara para muitos países em dificuldades extremas, talvez o melhor fosse mesmo ligar as rotativas e começar a imprimir muito e rápido, sem preconceitos e co-responsabilizando cada estado de igual forma. Se nada for feito, o que restará afinal desta União?
Então não tem lugar certo onde aguarde
Amor; trata traições, que não confia
nem dos seus. Que farei quando tudo arde?
Depois de tudo isto, apressadas as máquinas e exploradas as mãos operárias, restará pouco tempo para reflexões e decisões. As fábricas voltarão a sulfatar a atmosfera, os automóveis voltarão a encher as avenidas e o povo de Punjab, na Índia, deixará de ver as montanhas dos Himalaias.
Estará tudo a trabalhar em cima do momento com a pressa de apresentar números. Ao tópico Covid-19 seguir-se-á a palavra retoma nas manchetes. Os gráficos epidemiológicos darão lugar àqueles gráficos económicos de centenas de milhão nas ordenadas e voltará a ser tudo só sobre dinheiro. Se agora o achatamento de uma curva nos anima, pois eventualmente ficaremos mais contentes com outras curvas de crescimento, em valores até muito acima do expectável antes do surto epidémico.
Sucede que tudo isso dirá muito pouco às nossas vidas. Ou seja, tratada a doença não se olhará às comorbilidades. E são muitas: por um lado, salvaguardar questões mais imediatas para nós (paz, pão, habitação, saúde e educação) e depois outras questões globais, naturalmente mais complexas, como a sustentabilidade ambiental e a transição energética, a iminência da desintegração europeia, o crescimento de forças populistas (ou totalitarismos com adoçante) e as profundíssimas reconfigurações que se desenrolarão no xadrez da geopolítica.
Quando passarmos do interior de nossas casas para o mundo exterior das nossas rotinas, também o interior do país passará à história no que toca a prioridades. Se por aqui já muito ardeu, mais arderá – consumindo muito mais em vidas do que todos os hectares que já vimos reduzidos a cinzas. Posto isto, seria tempo de tratar dos elefantes na sala, da regionalização ao reordenamento do território: sem isso restará apenas terra queimada.
Esta reflexão, suave e leviana, poderá levar-nos a caminhos dissonantes, ambíguos ou pouco rigorosos – recordando, enfim, com saudade, as velhas conversas de café.
Nenhuma resposta é fácil, unívoca ou definitiva e na impossibilidade de traçar cenários e apontar previsões com apurado grau de certeza (vulgo prognósticos só no final do jogo), talvez só consigamos apontar direcções. Quanto a mim e ao que me toca, do mundo apenas espero vista larga; da Europa, solidariedade; do país, justiça; do que me envolve, beleza; de quem me rodeia, amor.
Palavras tão simples como fortes; vagas como transformadoras. Deveria bastar. Entre utopias e revoluções, por vezes um cravo no cano de uma espingarda chega e sobra.
Nasceu em Lamego, tem 28 anos e é ativista do Bloco de Esquerda desde os 16. Tem um forte pensamento crítico e teórico e gosta de pensar pela sua cabeça mas, verdade seja dita, isso nunca o levou a lugar algum. Confessa até uma certa relutância em referir-se na terceira pessoa.
É um diletante nato e dos rascunhos literários, ora falhados, ora eternamente arrastados, a sua melhor obra deverá ser mesmo tentar existir.
Atualmente vive e trabalha no litoral, para onde fugiu em busca de melhores condições de vida. A alma, essa, permanece no Interior.