Em 2020, a biomassa forneceu mais de um quinto da energia consumida nas casas portuguesas e o equivalente a 70% do consumo dedicado a aquecimento do ambiente doméstico. Predomina a lenha, mas uma em cada dez casas aquecidas recorre a pellets. A utilização de salamandras massificou-se, estimulada pela subsidiação pública da produção e consumo de pellets. Segundo o Inquérito ao Consumo de Energia do Setor Doméstico (INE/DGEG 2020), 115 mil agregados gastaram, em média, 280 euros em pellets. No entanto, a atual crise energética deixou estas pessoas em muito maus lençóis, com o preço a disparar de três para dez euros por cada 15 quilos. O consumo médio custará este ano mais 600 euros.
Os subsídios à queima de biomassa para produção de eletricidade – tal como à produção de pellets – assentam no argumento do bom aproveitamento dos resíduos florestais. Sucede que, desde há anos, o consumo de biomassa supera largamente a disponibilidade daqueles resíduos, dando lugar ao abate de árvores. Só em 2021, a capacidade de produção de pellets em Portugal aumentou 50% e a abertura de novas fábricas continua a ser subsidiada com fundos europeus, sem divulgação pública da escala da sua produção ou da origem da biomassa a utilizar.
Extrativismo exportador
De acordo com o Centro Pinus, associação de agentes económicos da fileira do pinheiro-bravo, a indústria consome 57% acima do que a floresta portuguesa pode fornecer de forma sustentável. O assalto ao pinhal português traduz-se num processo de desindustrialização e perda de valor acrescentado, com efeitos na desertificação do interior. A indústria de pellets compete por madeira e ameaça diretamente indústrias como as da serração, mobiliário ou construção civil, que está muito longe de poder substituir, tanto em número de trabalhadores como na sua qualificação, como ainda na sua dispersão territorial. Segundo o estudo publicado pela Zero, a produção de pellets consome 20% de toda a madeira de pinho, mas representa apenas 3% do valor de exportação de produtos à base desta madeira. E este valor económico deve ser relativizado, pois incorpora uma elevada subsidiação pública (pelo menos 100 milhões de euros desde 2008). Esse dinheiro público proporciona pellets mais baratos… a megacentrais elétricas no Reino Unido e na Dinamarca. Nestes países, antigas centrais a carvão reconvertidas para biomassa já absorviam (ainda antes das sanções à Rússia) mais de metade das 800 mil toneladas de pellets produzidas por cá.
Para contrariar a escalada dos preços, Espanha reduziu o IVA sobre os pellets. Mesmo que não seja absorvida pelas margens dos retalhistas e chegue a repercutir-se no preço ao consumidor doméstico, essa medida fica muito longe de compensar os aumentos verificados e não trava a subida dos preços. Em Portugal, a redução da taxa máxima (23%) para a mínima (6%), proposta pelo grupo parlamentar do Partido Socialista em sede de orçamento, se aprovada e repercutida nos preços, limitaria o aumento da fatura média a “apenas” 500 euros (em vez dos 600 adicionais com a taxa de IVA atual). Não é resposta.
Para responder ao consumidor médio, que está perante 600 euros de despesa adicional nesta estação fria, importa estabelecer limites à exportação de madeira e pellets e assegurar o abastecimento dos consumidores domésticos nacionais a preços fixados pelo governo. Para encerrar este abuso de um modelo extrativista que, longe de valorizar “sobras da floresta”, ameaça-a diretamente, é necessário interromper de imediato a subsidiação pública e a abertura de novas unidades de produção de pellets e centrais a biomassa.
O caso da salamandra apagada é mais um em que o mercado livre deixa a sua marca: extrativismo exportador de baixo valor acrescentado, rentismo devastador do território, da indústria e do interior, fator de pobreza energética.
Artigo publicado no jornal Público(link is external), a 17 de novembro de 2022