Sabendo que há riscos na utilização química, “porque estamos a ir no caminho contrário?”

Ambiente e agricultura sustentável no Interior – entrevista com Sandra Flores da Quinta de São Domingos
Imagem de nathalieburblis por Pixabay

Sandra Flores tem 44 anos. Nasceu no Porto, mas divide o seu tempo entre Vila Flor e Guimarães. É formada em artes, na área da cenografia. Dedica-se, atualmente, a um projeto agrícola com o seu pai e irmão – a Quinta de São Domingos, em Vila Flor.

 

O ambiente e a sustentabilidade são temas que interessam a Sandra Flores, que tem pesquisado sobre a relação de diversas plantas com as vinhas. Partilhou ao Interior do Avesso como a produção biológica e a regeneração do solo são objetivos de vida, numa entrevista dedicada ao ambiente e à agricultura sustentável: 

Quais os maiores desafios que enfrentamos em termos ambientais?

Eu acho que o debate que deve ser feito e que não está a ser muito realizado é entre os técnicos, os cientistas e as pessoas que trabalham na Terra, nomeadamente sobre a relação entre o ser humano e a Terra. Nesta zona há muito a questão dos herbicidas e a ideia de que na vinha só deve haver a cepa e a terra, queimando tudo à volta. E isso vai afastando outros animais e tem efeito nas plantas. Esse debate deve ser feito porque eu vejo uma discrepância muito grande entre o que os cientistas já sabem e defendem e a realidade, em termos de mudanças que têm de ser feitas ao nível da regeneração do solo, da utilização de combustíveis fósseis e de água. Este é um dos grandes problemas: a relação entre a teoria e a realidade. Na prática, o pequeno e médio agricultor não tem formação. Há muito a ideia de que se têm de desenrascar e, portanto, usar produtos – que são nocivos para a Terra e para nós; que são eternos, não biodegradáveis e vão ficando sempre a circular por aí.

Nós já ouvimos o Secretário Geral da ONU, António Guterres, dizer que não estamos em aquecimento global, mas sim em ebulição global. A temperatura já subiu, os problemas são emergentes e urgentes. 

Depois há o problema da água, da seca, que é gravíssimo. Nós vemos que há muita gente a instalar sistemas de rega nas cepas. O que nós aqui defendemos é a não transformação de uma cultura de sequeiro numa cultura de regadio. Porque não vai haver água para isso. As plantas têm de se habituar. Nós reparamos, por exemplo, que algumas cepas estavam mais fraquinhas, mas até foram aguentando a falta de água destes últimos anos e, depois, ficaram mais pujantes. Portanto, há uma relação em que se a planta for regada constantemente, acaba por se habituar e viciar. Nós não somos apologistas do sistema de rega – ou a planta aguenta ou não aguenta. Não há capacidade para regar tanto. Daqui a alguns anos vai ser ainda mais dramático. No Algarve, por exemplo, vemos muitas culturas de sequeiro transformadas em regadio. A plantação de abacate na Costa Vicentina que acaba por gastar 35 litros de água por dia, por cada árvore, é uma coisa absurda. Nós tentamos minimizar os gastos de água, até porque nesta lógica da agricultura regenerativa deixa-se um tapete verde que assegura a diversidade e garante mais humidade. O meu pai faz alguns regos nas vinhas para elas absorverem mais água. Vamos contornando a questão de outra maneira, mantendo mais humidade no solo de uma forma mais orgânica.

 

Que medidas deviam ser implementadas para a proteção ambiental, nomeadamente no Interior?

Eu acho que a política tem muita importância. A Política Agrícola Comum (PAC) retirou 35% de um subsídio para a agricultura biológica, mas já repôs porque houve conversações entre os agricultores e o Governo. Eu acho essa possibilidade de retirar o subsídio inadmissível. A agricultura biológica poderá ter outro tipo de custos de energia e financeiros porque é mais recente e há todo um caminho a percorrer, mas é preciso que os agricultores sejam motivados, apoiados e educados para a agricultura biológica. O que vemos a nível europeu é que, muitas vezes, os agricultores estão contra determinadas medidas ambientais porque se sentem lesados em comparação a outros agricultores de fora que não têm de cumprir as mesmas regras. Isso é um problema muito grave. O uso do glifosato, por exemplo, foi aprovado por mais 10 anos. Não devia de todo acontecer. Devia ser exatamente o contrário. Os agricultores deviam estar a defender uma agricultura sem químicos, biológica, amiga do ambiente e das pessoas… deviam pensar nas gerações que se seguem. Que mundo vamos deixar? O que nós vemos é que a preocupação primordial não é essa. No caso das grandes empresas é o lucro; no caso das pequenas e médias é sobreviver. Eu acho que temos aí um grave problema em termos de política. É fundamental ter campanhas de sensibilização, apoio, formação a todos os níveis. 

E o contributo da agricultura biológica é essencial. É preciso haver mais ligação entre os biólogos, os técnicos e os agricultores. Há pessoas nestas zonas do Interior, por exemplo pessoas mais velhas, que precisam mesmo. Porque uma pessoa é educada toda a vida para ter só a vinha e terra e, depois, é um bocado difícil perceber… No pós-guerra prometiam que os herbicidas eram muito bons até para haver mais alimento, só que não se sabia das consequências que agora estão à vista. Deve haver mais investimento a todos os níveis, nomeadamente na formação sobre a relação do Homem com a Terra e o tema da biodiversidade. Acho que o papel do agricultor ao interferir nessa relação entre várias espécies é de o fazer de forma inteligente.

 

Participaram no Movimento Cívico de Agricultores?

Nas manifestações, nós temos simpatia e entendemos. Mas, por causa dessa questão de não terem em conta ou até estarem contra medidas ecológicas, ficamos confusos. Nós não queremos ir nesse sentido. Sentimos que, em geral, até a nível europeu, as lutas são legítimas, mas em relação ao ambiente parece que quase querem um retrocesso. Nós não abdicamos dessa parte, não nos identificamos.

 

Que oportunidades e vantagens vês na agricultura biológica?

Vejo muitas. Acho que esse é o futuro. Claro que há uma certa resistência, mas eu não vejo outra solução. Temos cada vez mais doenças ligadas à alimentação, à qualidade do ar… Claro, se se põem produtos nocivos… Sabemos que há muitos riscos na utilização química, sabemos que o planeta está a entrar em colapso. Então porque estamos a ir no caminho contrário?

 

E que desafios há nesse modo de produção para além da resistência das pessoas e da falta de apoios?

Os desafios são diários. Só o facto de estarmos no Interior já é um desafio…

O meu pai tem inventado alguns mecanismos de cortar a erva, de tirar os ladrões das cepas de forma mecânica. Tem tentado arranjar tecnologias através da formação dele de mecânico. Eu vejo que desde o ano passado se sente muito mais confortável com os métodos. Já sabe que só tem de cortar a erva duas ou três vezes por ano, já consegue controlar melhor. No tapete verde, quando tens uma erva aérea que começa a retirar recursos à videira, é necessário cortar. O meu irmão, que também trabalha com o trator, também já está mais confortável. Claro que há sempre desafios, mas com o tempo passa a haver mais conforto. No início, a transição de não usar herbicida foi difícil, até porque no primeiro ano ainda estava cá o caseiro e nós estávamos ainda a aprender. A transição para o método biológico foi difícil. Atualmente, é difícil a produção de vinho – tudo aquilo que vem a seguir à colheita. A questão da adega é um desafio neste momento e a comercialização.

Também há a questão da pouca abertura para falar e trocar impressões com agricultores, porque cada um se fecha em copas. É um desafio tentar que haja mais união de quem trabalha na Terra face a problemas que devem ser comuns. 

Da parte da produtividade, entre o método convencional e biológico é ela por ela. Nos últimos anos até acabamos por superar em termos de produção porque aumentou bastante. Parece-me que é rentável a todos os níveis. Claro que, quando mudas de metodologia, há um espaço de 3 ou 4 anos de adaptação, mas depois é rentável. E as pessoas precisam de ver isso. Precisam de apoio, de formação e de demonstração. Não basta uma conferência ou um debate, é necessário algo mais quotidiano.

 

Dentro daquilo que é a agricultura alternativa à convencional há várias linhas orientadoras. Quais é que seguem?

Identifico o que estamos a fazer com a agricultura regenerativa. A base é a regeneração do próprio solo. Agora até acho que vão haver uns créditos para isso. Ainda não sei bem como funciona, mas sei que está a sair uma lei europeia sobre regeneração da Terra, daquilo tudo que está debaixo dos nossos pés e que é extremamente importante. Nós não vemos os micróbios, fungos e bactérias que são muito importantes para a biodiversidade. É isso que defendemos, a biodiversidade. Nós integramos a agricultura/viticultura regenerativa. O que fazemos é a regeneração do solo que foi castigado, durante muitos anos, com químicos.

 

A vossa família é do Porto e passaram por Guimarães. Porquê a decisão de vir para Vila Flor há oito anos? Qual o futuro deste projeto?

Isso era uma pergunta para o meu pai! No meu caso, foi a pandemia que me trouxe mais para aqui. Eu já cá vinha, mas era mais pontual. A pandemia fez-me pensar. A questão do vírus foi interessante na área da relação que temos com a natureza. Reparamos como nos grandes centros urbanos aquilo que era mais atrativo (como ir ao shopping, ao cinema…) passou a ser um risco por causa dos aglomerados de pessoas. Isso fez-me pensar muito: será que quero estar num ambiente poluído e onde o vírus se dá melhor? Mais gente, mais poluição… Aqui é mais agradável, ouvem-se os passarinhos e não há tantos químicos que nos possam fazer mal. A nível social não há tantas opções, mas vou rapidamente a Guimarães ou ao Porto. E convido pessoas para aqui. Tenho feito algumas residências artísticas um pouco improvisadas com amigos e pessoas que vêm ajudar na agricultura. Recentemente concorri em colaboração com uma Associação artística para um concurso da DGArtes. Gostava de unir a vertente da agricultura com as artes, usar o espaço para artistas. Ainda em termos de futuro, gostaríamos de ver algumas possibilidades de parcerias com empresas da zona para a elaboração de vinhos biológicos num trabalho em rede.

 

Para terminar, que medidas faltam no Interior do país (não necessariamente na agricultura)?

É assim, a Câmara Municipal tem feito alguns eventos. A nível artístico, cada vez mais convida grupos e realizam atividades bem interessantes. Nós na Quinta de São Domingos participamos todos os anos nas Reisadas, com o nosso grupo musical Regis Dominicus. Mas acho que podiam haver muito mais atividades culturais. Trazer mais pessoas de fora, até estrangeiros, para disfrutar do espaço, para estar nas quintas (até como temos feito aqui de forma informal). Por exemplo, trazer jovens que queiram vir experimentar umas vindimas. Podia haver mais esse apoio, esse suporte de interação entre o Interior e as metrópoles. Nas cidades, os artistas também sentem muita falta da qualidade de vida daqui. Temos de fazer com que isto não seja um bicho de sete cabeças de aborrecimento. Pode haver muito mais animação, entretenimento, educação. Aqui em Vila Flor vamos ter o projeto do Ecopark – parece-me muito interessante porque também envolve a vertente das alterações climáticas e vamos ver o que vai resultar daí. Acho que o lema principal é ir sempre pensando global e agindo local.

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