O processo da Panificadora de Vila Real é o resultado da mais profunda ignorância coletiva que podemos assistir.Poderíamos dedicar alguns parágrafos a definir os conceitos de valores de memória e identidade associados ao património cultural, mas nesta fase já não importa. A Panificadora de Vila Real está a ser demolida e todos os valores, legislação, cartas e convenções nacionais e internacionais foram rasgados pela incúria, pela ignorância e pela leviandade dos agentes políticos. Sim! O processo da panificadora de Vila Real é o reflexo da mediocridade da classe política, sobretudo a local, que não consegue perceber a dimensão da obra e o privilégio para a cidade em ter um dos raros exemplares de arquitetura moderna de Nadir Afonso.
Primeiro uma referência à obra e ao artista, depois o descartar de responsabilidades, desde a Câmara Municipal à Direção Regional de Cultura do Norte (DRC-N) e mesmo à Direção Geral do Património Cultural (DGPC).
Nadir Afonso, arquiteto e pintor. Podia destacar o facto de ser transmontano, de ter nascido em Chaves, mas Nadir é um artista maior. Maior que a terra em que nasceu. Maior que o país que o acolheu. Maior que os políticos que não o respeitam.
Formado pela Escola de Belas Artes do Porto, a sua obra é repartida entre a pintura e a arquitetura. Na pintura, participa em todas as exposições do Grupo dos Independentes, tendo apresentado obras que se enquadram nas correntes internacionais: expressionismo, surrealismo, abstracionismo, geometrismo… Estuda em Paris (1946 – 1951), no centro nevrálgico do desenvolvimento do modernismo europeu, onde trabalha com Le Corbusier, considerando um dos mais importantes arquitetos do século XX, assim como Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto, Mies van der Rohe e Óscar Niemeyer. Nadir Afonso, de 1952 a 1954, no Brasil, trabalha com Óscar Niemeyer. Regressado a Paris e posteriormente a Portugal. Em 1963, projetou a panificadora de Chaves, e, consequentemente, a de Vila Real, sendo estas duas das mais significativas obras da arquitetura industrial portuguesa do século XX.
O estado da arte
Desde a sua construção, até aos anos 90 do século XX, a panificadora manteve-se em funcionamento e o seu estado de conservação foi mantido. Desde a falência da empresa e consequente abandono das instalações, Manuel Martins, presidente da Câmara Municipal de Vila Real, eleito pelo PPD/PSD, invicto de 1993 a 2013, e Rui Santos, Presidente da Câmara Municipal de Vila Real, eleito pelo PS, de 2013 até então, não viram qualquer interesse no edifício. A sua inação levou ao atual estado de ruína do edifício e, portanto, são eles os responsáveis políticos pela degradação, abandono e danos causados à estrutura desta obra arquitetónica.
O processo de classificação, que deveria ter sido iniciado e ter o empenhamento autárquico, não se verificou. O procedimento de classificação foi iniciado pela cidadã Ana Luísa Alves Morgado, que depreendo, por imperativo de consciência e lucidez cultural, iniciou o processo junto da DRCN, que acabou por ser arquivado pela DGPC, DRCN e ignorado pela autarquia.
Sobre a classificação de bens. A classificação é um procedimento administrativo que valoriza culturalmente determinado bem. Existem três categorias de bens: interesse nacional, interesse público e interesse municipal. As atribuições em matéria de classificação e inventariação de bens de interesse nacional e interesse público incumbe aos diferentes órgãos e serviços do Estado e as atribuições em matéria de classificação e inventário de bens de interesse municipal, nos termos da lei, incumbe aos municípios (Lei 107/2001 de 8 de setembro, nº 1, Artº. 94).
«Consideram-se de interesse municipal os bens cuja protecção e valorização, no todo ou em parte, representem um valor cultural de significado predominante para um determinado município.» (Lei 107/2001 de 8 de setembro, nº6, Artº. 15). Ora, torna-se claro que o edifício da panificadora de Vila Real «representa um valor cultural de significado predominante» para o município de vila Real, senão vejamos os pareceres da DRCN e da DGPC através do Conselho Nacional de Cultura (CNC).
O CNC refere que «estamos perante um caso, infelizmente corrente, de um imóvel que, pela sua qualidade, tudo merecia, mas que, dado o estado caótico a que chegou, põe a sua proteção em questão». Lembramos que o estado caótico a que o edifício chegou tem responsáveis. O mesmo CNC recomenda que a panificadora de Vila Real deva ser classificada como Imóvel de Interesse Municipal.
Também o parecer da DRCN, bem mais lúcido e claro quando à necessidade de preservação do edifício, destaca o valor da obra arquitetónica, do arquiteto, do testemunho simbólico, do valor estético e técnico da obra. É ainda ponto de destaque o facto de a obra arquitetónica de Nadir Afonso ser escassa, tornando os exemplares existentes mais valiosos. É assumido que o cenário existente é mau, fruto de demolições ilegais e da degradação do imóvel pelo abandono, tendo funcionado como depósito de lixos ao longo de diversos anos. No entanto, as estruturas fundamentais mantêm-se, sendo totalmente possível a reconstrução das partes demolidas, dada a existência do projeto original.
Sendo argumentado o mau estado de conservação do imóvel e os danos causados, bem como a oposição do proprietário e da Câmara Municipal de Vila Real ao processo de classificação, a DRCN adverte que o arquivamento deste processo de classificação tendo por base o estado de conservação e a perda da integridade do bem «pode ser entendido como um sinal de que causar danos a um imóvel para impedir a classificação, compensa». E neste caso é claro que compensou!
Houvesse a coragem política e a lucidez cultural suficiente, e a obra de Nadir Afonso teria sido preservada dos diversos ataques a que tem vindo a ser alvo. Infelizmente, por ignorância ou apenas desconhecimento, a comunidade de Vila Real apenas vê lixo, sujidade e problemas sociais, num espaço que foi deixado ao abandono por todos e cujas responsabilidades não são exigidas pela cidadania.
Resta-nos o processo de classificação da Panificadora de Chaves, para preservar um ícone da arquitetura moderna portuguesa. No fundo, perdemos todos e Vila Real fica ainda mais pobre.
1.Grupo de artistas que organizava entre 1943 e 1950 diversas exposições de arte, incluindo obras de escultores, pintores e arquitetos. É neste contexto que a arte abstrata portuguesa conhece a sua maior expressão longe de preconceitos e complexos.
Investigador em Ciências do Património e Museólogo.
Vive em Vila Real e tem desenvolvido o seu trabalho e estudo na área da Museologia, das Ciências do Património e da História da Arte. Entende que o acesso à cultura e ao património é um direito de todos os cidadãos. Defende a democratização da cultura.