Há uma imensidão de erros que nos nascem das palavras. Eu sei. Mas há dias em que as palavras são lançadas na vida como pedaços vivos de sentimento e depois pairam solitárias e belas até repousarem como exemplo no pretérito dos verbos.
As palavras são os projectos sinceros da nossa acção, o esqueleto do pensamento, a estrutura dos sonhos e da dinâmica histórica.
As palavras são marcas que tingem a alma dos dias. Através delas construímos a vida, transformamos o mundo e moldamos o futuro.
Nelas, nas palavras, no combate verbal, na nossa expressão, vertemos o amor, vertemos o ódio, a beleza extrema, o pensamento e a revolta. Há quem diga que as palavras são a feição visível do nosso ser, a parte significado do nosso significante.
Sem palavras não vivo, ou preferiria não viver.
Por isso, o que realmente me irrita, o que me arrepia, o que me revolta são os seres sem palavras. Os seres que sem palavras assistem a tudo com uma resignação de escravo. Os seres que não reagem a nada, mesmo que seja com um grunhido. Os seres que assistem a tudo com uns olhos e a postura medonha de um cão submisso e mesmo se calcados não gritam o sentido da dor.
O ser sem palavras vive apenas preocupado com a sua vidinha, uma vidinha bem arrumadinha no aconchego do lar. E não diz mal do Governo, e não critica o presidente da Câmara, ou a oposição ou o patronato. Muito menos se importa com coisas comezinhas da política, da ciência, da filosofia ou da poesia. O ser sem palavras apenas usa as palavras para rezar, e assim sendo utiliza sempre as mesmas palavras, porque a vida está uma carestia e não se pode desperdiçar.
E se a região está moribunda, ou se a cidade se despovoa, o ser sem palavras encolhe os ombros e de vez em quando até assobia uma música pimba de costas voltadas para o lado dos olhos do tempo.
Discutir não lhe interessa, participar não lhe interessa, debater não lhe interessa, reivindicar não lhe interessa, a região não lhe interessa, o país não lhe interessa…apenas lhe interessa a sua casinha, o seu “empregozinho”, a sua doce e sagrada família, o valor da sua casinha, o valor do seu “quintalzinho” e o “perdãozinho” divino que há-de um dia alcançar.
Um ser sem palavras sussurra. Apenas sussurra. E no sussurro odeia o vizinho e depois reza e depois comunga; aponta o dedo ao vizinho e depois reza e depois comunga; trama o vizinho e depois reza e depois comunga. E se pudesse até expulsava o vizinho da existência terrena e depois fazia uma “penitenciazinha” de resignação e ficava assim perdoado.
Um ser sem palavras é um ser sem ação; um tosco em bruto, um tosco sem a alma regada de boa terra que o faça germinar. Um ser sem palavras é um ser resignado, um ser pardo, um improdutivo de ideias, um ser sem interesse social.
Um ser que não tenha palavras para verter no vento, para se indignar, para amar, para propor, para sonhar, para transformar ou para fazer acontecer… não é, nem pode ser um democrata!
Ai Trás-os-Montes, como tens andado emudecido!
Arqueólogo/Historiador de profissão. Desenvolve a sua atividade no âmbito da investigação, gestão e preservação do Património Cultural. É autor de publicações de divulgação e de publicações com carácter científico. Divulgador. Exerce regularmente, por complemento da sua ação cultural, a atividade da escrita jornalística.