Quando chego o cenário é sempre o mesmo: abandono.
Corro como andarilho estas aldeias quase nada onde testemunho um processo lento e sedimentar de extinção. Casas derruídas. Casas quase envergonhadas por já não servirem de albergue a sentimentos e dores, a alegrias e privações.
Empurra-se uma porta e do interior nascem resquícios de vidas. Em alguns casos as pilheiras continuam com os púcaros de barro de onde sequiosos lábios deglutiram a água fresca da Fonte dos Cavalos.
O sobrado ruinoso, apodrecido, mistura-se já com o musgo e a taipa, tudo num amontoado de inertes materiais a apodrecer com os reles artefactos que ficaram esquecidos no tempo da partida. Aqui um pedaço de barro preto, ali uma tigela, e mais além uma bilha e duas talhas de barro já sem proveito. Está tudo ainda inteiro, mas quando a outra parte do telhado sucumbir, tudo se há-de metamorfosear em lixo, sem préstimo ou valor. Até mesmo as pedras das centenárias paredes desta casa se hão-de amontoar, cansadas de resistir à ausência de um aconchego interior.
A casa do Nordeste está quase morta, e com ela está a morrer um cibo da nossa alma.
Houve tempo em que a casa nordestina era a célula que organizava a estrutura económica e social dos núcleos aldeões, encerrando em si uma linguagem elucidativa sobre um característico modus vivendi.
A arquitetura tradicional nordestina exprimia um certo pragmatismo existencial, valorizando fatores puramente funcionais, em detrimento de superfluidades sem qualquer aproveitamento prático.
Mas esta casa está hoje praticamente desabitada, porque o mundo rural, o mundo agro-pastoril, o mundo do bucolismo e dos ciclos agrícolas já quase também não existe.
É adquirido como provável que as estruturas habitacionais tradicionais que pontuam e elaboraram o cerne da aldeia do nordeste português, tenham a sua ascendência arquitetónica em modelos que vêm desde o período romano.
A casa de um só piso resulta de uma relação do homem com o espaço de exploração agrícola, e esta estava quase sempre articulada com um núcleo familiar baseado numa economia de subsistência.
Da casa térrea a arquitetura vernácula parece ter evoluído para a casa de dois pisos, mais difundida durante a Idade Média, e que organiza já espaços em diferentes cotas com comunicação facultada por acessos assentes em escadas exteriores. O rés-do-chão era destinado às lojas para o gado, à arrumação de alfaias, aos silos, ou à adega; no piso do sobrado arranjava-se o espaço de forma a fazer face às necessidades funcionais e sociais do agregado familiar. Tanto num caso como no outro, a casa rural do nordeste exprimia um significado cultural de linguagem ecológica, baseada no aproveitamento racional de materiais que o meio ambiente proporcionava.
Mais do que em qualquer outro caso, este tipo de modelagem volumétrica do espaço define a habitação como uma unidade orgânica e integrada dentro do ambiente físico, satisfazendo necessidades funcionais inerentes quer à produção material, quer ao sistema das relações sociais e culturais. Por isso mesmo, Manuel Maria Diogo considera esta arquitetura como “pragmática e de alguma maneira exacta, porque nela tudo obedece a um motivo, sem aditamentos supérfluos e em função de uma utilidade perfeitamente incluída no núcleo onde se constrói e no espaço físico onde se suporta”.
A casa do nordeste exprime, melhor do que qualquer outro documento, a materialização da natureza; ou melhor, a objetivação e concretização harmoniosa da relação homem/meio. E a sua identidade e originalidade residia, precisamente, no aproveitamento dos materiais disponíveis numa proximidade espacial que não implicasse o pagamento de força de trabalho que o modesto camponês da altura não podia suportar. Da conjugação desses fatores resultou a operacionalidade, a simplicidade e a beleza da casa nordestina.
Mas essa casa, atualmente, vai dando lugar a outras construções. Essa casa é hoje um testemunho caído de um tempo já sem existência. É hoje o símbolo do abandono. É uma casa arruinada, decadente, sem vida, com um semblante tão murcho como os olhos prostrados dos velhos que procuram as carícias do sol no largo soalheiro da Fonte dos Cavalos.
Arqueólogo/Historiador de profissão. Desenvolve a sua atividade no âmbito da investigação, gestão e preservação do Património Cultural. É autor de publicações de divulgação e de publicações com carácter científico. Divulgador. Exerce regularmente, por complemento da sua ação cultural, a atividade da escrita jornalística.