A norma de uma língua é para Maria Helena Mira Mateus “a modalidade linguística escolhida por uma sociedade enquanto modelo de comunicação”. Esse padrão manifesta-se sob duas formas: a oral e a escrita. A forma escrita é mais rígida que a oral e depende em grande parte da tradição literária, do trabalho dos gramáticos e por último das opções políticas.
Convém estabelecer um ponto de partida dizendo que a padronização é necessária para estabelecer regras a um correto entendimento dos comunicadores. Se a norma oral é mais elástica que a escrita e, regra geral, vai condicionando esta; a norma escrita é mais lenta na sua evolução e muito raramente impõe o que quer que seja à oralidade. Podemos concluir que subsiste esta dialética entre a ortografia que pretende regular, estabilizar e normalizar e a fonética que varia inexoravelmente no tempo e no espaço.
O grande desafio da escrita, como conceção é recrear o contexto, o ambiente da fala. A oralidade transporta o contexto extralinguístico, gestos, olhares, ritmos… e isso é difícil transportar para a escrita.
Todos sabemos que se materializam vários padrões orais de acordo com as regiões falantes ou mesmo grupos culturais, porém a norma padrão é quase sempre comum na comunicação pela escrita. Esta tem dependido de muitos fatores, entre os quais: os escritores consagrados que vão impondo novos vocábulos, os gramáticos e linguistas que estabelecem modelos a seguir, a pressão da aculturação de novos vocábulos pela pressão de outras línguas e, em alguns casos, os acordos internacionais dos países que dependem de condicionalismos políticos.
A língua escrita não é também um mero objeto funcional como uma folha de papel sobre o qual praticamos o ato, ela é um objeto cultural, é parte do nosso património, por isso com um alto valor afetivo. Esta relação de amor materializa-se sempre que a vemos incorretamente utilizada. Recordo a anexação espanhola de 1580 que trouxe a língua para a frente de resistência do domínio filipino, o combate ao francesismo iniciado em Garrett com um regresso à pureza inicial consumado no Romanceiro e no Cancioneiro Geral e continuado com o também francófono Eça que brada contra a degeneração do português face á moda do francesismo, até ao clamor surgido na década de setenta, aquando da primeira transmissão da primeira telenovela brasileira, que previu a completa deterioração da língua e à contaminação derivada da atual globalização económica.
O processo de fixação de uma língua na forma escrita é artificial, repito artificial, e contrasta com a naturalidade da aprendizagem da oralidade. O estabelecimento da norma escrita é resultado da interação entre o poder, a linguagem e a reflexão sobre a própria língua. Se o conceito de língua está ligado ao de nacionalidade torna-se objeto do cuidado dos agentes do poder na definição de legislação e implementação da regulação. Porém a pressão da linguagem oral é sempre um forte fator de atualização do código escrito.
O pensamento sobre a língua é uma condição essencial para o estabelecimento das regras e visa a eficácia, a identidade cultural e a planificação linguística. A eficácia é, tanto maior, se preservar a imutabilidade. A identidade ligada ao conceito de nacionalismo transforma a língua num elemento congregador de grupos e é cimento de coesão nacional. A planificação linguística como atividade nacionalizada e formalmente orientada é objetivo central de toda a política para as línguas no espaço nacional.
O linguista António Emiliano a propósito dos primeiros documentos escritos em romance, isto é o português antigo, defende “uma interpretação logográfica” destes documentos aquando da sua oralização. Por se tratar de documentos notariais que tinham de ser percetíveis a todos e o latim já não seria transparente quanto baste utilizar-se-iam as formas do romance de modo a ser lidos de viva voz. O escriba procurava transmitir graficamente o mais possível a pronúncia da língua plasmada da oralidade.
Para a construção da norma do Português podemos considerar quatro momentos fundamentais. O primeiro é a decisão do rei D. Dinis de determinar que todos os documentos oficiais devem ser escritos em Português. O segundo foi a deslocalização da classe culta e dirigente para Lisboa que recebeu gente de todos os falares, padronizou as diferenças e constitui uma variedade linguística a modos de neutra. Paiva Boleo, coordenador da Nomenclatura Gramatical Portuguesa, defende a importância deste momento, advogando o nascimento da nossa língua não no norte mas ao centro e sul do país. O português demarca-se definitivamente do galaico-português que apenas sobrevive na oralidade. O terceiro período, chamado do Português Clássico corresponde a uma intenção normalizadora com a atuação dos gramáticos e afins que permitem uma maior estabilização da língua escrita num processo que é pautado também por um certo regresso às origens e à marca latina. A limitação deste período é feita pela publicação das primeiras gramáticas portuguesas, na época de quinhentos, e prolonga-se até à reforma do Marquês de Pombal que inicia o quarto período. Esta reforma traduz uma consciência linguística inserida numa política que visa manter a unidade e consolidar a língua portuguesa relativamente aos outros idiomas. Assim se fixa uma norma que se impõe como idioma nacional.
É já no século XX que se discutiram e decidiram ao nível legislativo normas sobre a escrita. Destacamos três outros momentos. Em 1911 o Governo nomeia uma comissão para estabelecer a ortografia a utilizar nas publicações oficiais. Em 1945 de um acordo entre Portugal e o Brasil resulta a moderna nomenclatura ortográfica que hoje se utiliza. Em 1990 foi assinado o denominado Novo Acordo Ortográfico, nosso objeto de nova reflexão em ocasião oportuna.
Natural da freguesia de Selores, concelho de Carrazeda de Ansiães.
Professor do 1º Ciclo do Ensino Básico, mestrado em cultura portuguesa, doutorando em língua e cultura portuguesa. Socio-fundador da Cooperativa Rádio Ansiães e seu diretor entre 1987 e 1997. Colaborador de vários jornais locais e regionais.