CINEMA PORTUGUÊS NO FEMININO: MUITOS DIAS SEM DEUS

Imagem de Cinema 7 Arte

A segunda metade do século XX foi marcada por uma presença avassaladora do feminino no cinema, principalmente nas áreas da realização e da produção. No entanto, este crescimento passa despercebido numa indústria – tanto a nível nacional como mundial -, dominada maioritariamente por cineastas-homens, feito e visto por homens, com ideologias masculinas, e que sim, está desde sempre atento ao feminino, contudo, a todos os seus clichés imaginários.

Numa breve abordagem à história do cinema português feminino, este nasce com o filme “Três Dias Sem Deus” (1946) da realizadora pioneira Bárbara Virgínia. Antes de si, reconhece-se Virgínia de Costa e Almeida, a primeira produtora-mulher portuguesa, que fundou a Fortuna Filmes.

A partir de “Três Dias Sem Deus”, surgem outros filmes de realizadoras ao longo do tempo, ficções e documentários, cujo estilo é muito característico e próprio – mais sensível, sonhador, espiritual, num âmbito da simbologia/metáfora, das relações sociais e amorosas, e uma maior abordagem do psicológico e emocional – estilo esse que sofre mutações, mas que perdura.

Bárbara Virgínia, Teresa Villaverde, Cláudia Varejão, Margarida Cordeiro, Noémia Delgado, Solveig Nordlund, Margarida Cardoso, Leonor Teles, Maria de Medeiros, entre outras, são exemplos de um espectro muito maior de realizadoras que inverteram o papel que lhes foi tradicionalmente atribuído, revelando modos de olhar distintos e disruptivos.


Este artigo foi escrito para assinalar a Greve Feminista Internacional, que se realiza a 8 de março (Dia Internacional da Mulher). Em Portugal, a greve convocada pela Rede 8 de Março, vai contar com manifestações em várias cidades: Braga, Coimbra, Évora, Faro, Lisboa, Ponta Delgada, Porto e Viseu (lê o manifesto e mais detalhes aqui) – “Se as mulheres param, o mundo pára!”.


Bárbara Virgínia

Bárbara Virgínia, nome artístico de Maria de Lourdes Costa, foi uma das primeiras realizadoras de cinema em Portugal. Iniciando-se artisticamente como bailarina, declamadora e atriz, realizou, muito jovem, uma longa metragem em 1946. Imigrou em 1952 para o Brasil, para trabalhar em rádio e televisão. Aí se radicou, constituiu família, abandonou a declamação, e faleceu em 2015. “Três Dias Sem Deus” fez parte da seleção da edição inaugural do Festival Internacional de Cinema, em Cannes, em 1946.

Com apenas 22 anos, tornou-se a primeira mulher a realizar uma longa-metragem de ficção em Portugal, em pleno Estado Novo, e na primeira mulher a competir no recém-criado Festival de Cinema de Cannes.

Filmografia Essencial:

  • Três Dias Sem Deus (1946)

Teresa Villaverde

Nascida na capital em 1966, Teresa Villaverde é uma das principais realizadoras da nova escola do cinema português dos anos 90 (da mesma geração de João Pedro Rodrigues e Pedro Costa). A sua primeira obra, “Idade Maior”, teve a sua estreia mundial no Fórum do Jovem Cinema, na Berlinale de 1989 e foi galardoada em variados festivais importantes. A estreia de “Os Mutantes” (1998), na secção Un Certain Regard no Festival de Cannes, valeu-lhe um maior reconhecimento a nível internacional. “Água E Sal” (2001), o seu filme seguinte foi exibido no Festival de Cinema de Veneza. Villaverde realizou um documentário, “A Favor Da Claridade” (2004), e uma curta-metragem, “Cold Wa(Te)R” (2004), para o projeto cinematográfico “Visões da Europa” (2004). O drama “Colo” (2017) estreou-se em competição na Berlinale. Villaverde realizou mais duas curtas e uma longa documental: “O Termómetro de Galileu” (2018), onde filma a família do realizador Tonino De Bernardi. A cineasta lançou também o seu primeiro livro no ano passado: “Sem Fiordes. Caos e/ou o Processo Criativo”.

Teresa Villaverde diz que “o texto foi escrito na ressaca de um filme, o

“Transe” (2006), filmado na Rússia, na Alemanha, em França, e em Portugal. O primeiro dia de rodagem foi a bordo de um quebra gelo no mar Báltico, o último perto de Lisboa num dos dias mais quentes daquele ano, 60 graus de amplitude térmica. Por muitas razões, para além dessas, foi um dos filmes mais duros que fiz.”, e acrescenta ainda: “Quando considerei o filme pronto, não percebi logo que em mim aquele tempo não estava completamente fechado, nem que se tinha confundido com muitas outras coisas que eu já tinha vivido antes. Penso que este texto vem inconscientemente da necessidade de despir tudo o que sobrou.”

Filmografia Essencial:

  • “Os Mutantes” (1998)
  • “Cisne” (2011)
  • “Colo” (2017)

Cláudia Varejão

Cláudia Varejão nasceu no Porto em 1980, e estudou Cinema no Programa de Criatividade e Criação Artística da Fundação Calouste Gulbenkian em parceria com a German Film und Fernsehakademie Berlin, na Academia Internacional de Cinema de São Paulo e Fotografia no ARCO (Centro de Arte e Comunicação Visual), em Lisboa. Realizou uma trilogia de curtas-metragens – “Fim-De-Semana” (2007), “Um dia Frio” (2009) e “Luz da Manhã” (2011). “Ama-San 海女さん (2016) foi a sua estreia nas longas metragens, recebendo dezenas de prémios em todo o mundo, incluindo o Grande Prémio Internacional no Festival de Lille de 2009, Melhor Filme da Competição Portuguesa do DocLisboa de 2016 ou Melhor Filme no Prado Ljudski Film Festival em 2016. Os seus filmes têm sido selecionados e premiados pelos mais prestigiados festivais de cinema, passando por Locarno, Roterdão, Visions du Reel, Cinema du Reel, Karlovy Vary, Art of the real – Lincoln Center, entre muitos outros. A par do seu trabalho como realizadora desenvolve um percurso na fotografia.

Filmografia Essencial:

  • “Ama-san 海女さん” (2016)

Margarida Cordeiro

Margarida Martins Cordeiro nasceu em 1938, no Mogadouro e é coautora de uma obra mítica do cinema português do pós 25 de Abril.

“Trás-os-Montes” (1976), o primeiro filme que assinou com António Reis, tornou-se uma referência para toda uma geração, e 33 anos depois da estreia continua a ser a súmula da portugalidade. “Para um povo e para um país à procura de si próprios”, escreveu João Bénard da Costa, “é uma das poucas pedras do caminho que nos pode ajudar a reencontrar a direção“.

Seguiram-se mais dois filmes: “Ana” (1982) e “Rosa de Areia” (1989).

O projeto seguinte seria a adaptação da obra-prima do mexicano Juan Rulfo“Pedro Páramo”, no qual Manuel Mozos trabalhou, mas Reis morreu em 1991. Margarida quis continuar a ideia, chegou a ir ao México fazer pesquisa, mas recebeu recusas sucessivas de subsídio até o filme ser aprovado. Nunca chegou a ser feito.

Distanciou-se da área do cinema e foi chefe de serviço de psiquiatria, do Hospital Miguel Bombarda. Já reformada, Margarida Cordeiro foi viver para a casa da mãe, em Bemposta.

Filmografia Essencial:

  • “Trás-os-Montes” (1976)
  • “Rosa de Areia” (1989)

Noémia Delgado

A realizadora portuguesa Noémia Delgado, autora de um pioneiro documentário etnográfico sobre os caretos tradicionais de Trás-os-Montes, “Máscaras” (1976), inspirada nos trabalhos etnográficos de Benjamim Pereira, nasceu em Angola, passou a infância e adolescência em Moçambique e chegou a Portugal em 1955.

Ligada desde os anos 60 ao cinema português e à geração do Cinema Novo, que então procurava revolucionar a produção cinematográfica nacional, foi assistente de Paulo Rocha em “Mudar de Vida” (1966) e de Manoel de Oliveira em “O Passado e o Presente” (1971), tendo depois estagiado em Paris com Jean Rouch.

Nos anos 80, Noémia Delgado realizou vários documentários e séries para televisão, sobre as regiões vinícolas nacionais, a arte nova e déco no norte de Portugal ou o trabalho do ouro e da prata também no norte do país. Assinou ainda a série “Palavras Herdadas”, dedicada a escritores portugueses, e publicou um livro de poesia, “Jacarandá no Coração” (1986). O seu último filme, “Quem Foste, Alvarez?”, de 1988, é dedicado ao pintor modernista português José Dominguez Alvarez. Faleceu em março de 2016, aos 82 anos, em Lisboa.

Filmografia Essencial:

  • “Máscaras” (1976)
  • “Quem Foste, Alvarez?” (1988)

Solveig Nordlund

A luso-sueca Solveig Nordlund realizou longas e curtas-metragens de ficção, documentários, trabalhou para televisão e chegou a adaptar para cinema obras literárias de António Lobo Antunes. Nordlund, de 76 anos, produtora, montadora, realizadora, argumentista, é uma das raras mulheres ligadas à história recente do cinema português, desde o início dos anos 1970, e permanece ainda em atividade. A cineasta passou grande parte da vida em Portugal, depois de ter conhecido um grupo de jovens realizadores portugueses em Paris, nos anos 1960. Em 2015, decidiu mudar-se para a Suécia, para a região da Costa Alta, onde trabalha numa casa virada para o mar Báltico.

Esteve ligada ao Centro Português de Cinema e à cooperativa de produção Grupo Zero, através da qual fez os primeiros filmes, como a longa-metragem de estreia, “Dina e Django”, de 1981, uma espécie de um pulp fiction exuberante. O último filme de ficção que rodou em Portugal foi em 2011, uma adaptação de “A morte de Carlos Gardel”, de Lobo Antunes, juntando, depois, documentários sobre José Pedro Croft, sobre ela própria e sobre Mia Couto.

Filmografia Essencial:

  • “Dina e Django” (1981)
  • “A Lei da Terra” (1977)
  • “Aparelho Voador a Baixa Altitude” (2002)

Margarida Cardoso

Nasceu em Tomar, em 1963 e viveu em Moçambique até 1975. Estudou Imagem e Comunicação Audiovisual na escola António Arroio, em Lisboa. Trabalhou em França e Portugal como fotógrafa e assistente de realização. Desde 1995 que desenvolve um trabalho muito pessoal entre a ficção e o documentário. 

Foi premiada com o “Léopards de Demain”, no 52º Festival de Locarno e a sua primeira longa metragem “A Costa dos Murmúrios” estreou no Festival de Veneza, em 2004. “Yvone Kane” chegou aos cinemas dez anos depois da primeira longa-metragem de ficção. Trata-se de um revisitar a uma Moçambique traumatizada pelos horrores da guerra colonial e pelas promessas não cumpridas.

Filmografia Essencial:

  •  “A Costa dos Murmúrios” (2004)
  • “Yvone Kane” (2014)

Leonor Teles

Filha de pai de origem cigana, oriunda de Vila Franca de Xira, licenciou-se em Realização e Cinematografia na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, e tem um mestrado em Audiovisual e Multimédia da Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa.

O seu primeiro filme foi o documentário “Rhoma Acans” (2013), onde explorou as suas raízes ciganas. Conquistou o prémio Take One!, no festival de Vila do Conde.

Aos 23 anos, foi a mais jovem realizadora de sempre a receber um Urso de Ouro com a sua curta metragem “Balada de um Batráquio” (2016), um filme de intervenção quanto à questão do preconceito xenófobo português em relação aos ciganos.

“Terra Franca” (2018), foi a sua primeira longa-metragem documental, produzida por Uma Pedra no Sapato, sobre uma antiga comunidade piscatória do Tejo, em particular sobre um homem solitário.

A mais recente obra de Teles, “Cães que Ladram aos Pássaros” (2019), foi nomeado pelo Festival de Veneza para o prémio de curta-metragem da Academia Europeia de Cinema, em 2019.

Filmografia Essencial:

  • “Balada de um Batráquio” (2016)
  • “Terra Franca” (2018)

Maria de Medeiros

Maria de Medeiros nasceu em Lisboa numa família de intelectuais. Viveu toda a sua infância em Viena de Áustria.

Após a Revolução dos Cravos em 1974, seguiu os seus pais para Lisboa. Fez toda a sua escolaridade no Liceu Francês. Aos quinze anos, interpreta o seu primeiro papel no cinema em “Silvestre” (1981), de João César Monteiro.

Maria protagonizou grandes produções como “Henry & June” (1990), de Philip Kaufman ou “Pulp Fiction” (1994), de Quentin Tarantino, mas também representou em cinema independente. Maria permaneceu sempre muito fiel ao cinema português, filmando com Manoel de OliveiraTeresa VillaverdeLuís Galvão Telles e Joaquim Leitão.

Para além da sua atividade como atriz, realizou curtas e médias metragens, entre as quais Fragmento II (1988), a partir da peça de Samuel Beckett, e “A Morte do Príncipe” (1991), a partir da peça de Fernando Pessoa. Em 1999, dirige a sua primeira longa-metragem, “Capitães de Abril” (Selecção oficial Cannes 2000) sobre a Revolução dos Cravos, pela qual obtém o Grande Prémio da Mostra Internacional de São Paulo, no Brasil, o Globo de Ouro para o melhor filme em Portugal e vários prémios do público em França.

Entretanto realiza vários documentários, e passados 19 anos, lança a sua mais recente ficção, “Aos Nossos Filhos” (2019), rodada no Rio de Janeiro, uma adaptação de uma peça de teatro que aborda a homossexualidade e as novas configurações das famílias.

Filmografia Essencial:

  • “Capitães de Abril” (2000)
  • Aos Nossos Filhos” (2019)

Texto escrito por Inês Paredes para o projecto da comunidade Cinema 7 Arte.

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