O cinema transporta o Homem para um sonho
“O homem é genial sempre que sonha”, já dizia o cineasta Akira Kurosawa. O público sonha na sala de cinema, lugar de imaginação e evasão, ela é o espaço tradicional, desde os primórdios do cinema. É uma experiência do cinema coletiva. Essa experiência, por mais individual e pessoal que seja, é feita em conjunto com centenas de pessoas ao mesmo tempo, na sala de cinema. “O cinema é sonho. É um sonho artificial. O cinema não será também ele um sonho?. Vou ao cinema do mesmo modo que adormeço.” (1). Este sonho é assim uma experiência. Essa experiência só existe se houver espectadores, são eles que constituem o próprio cinema. É a experiência cinematográfica. Essa experiência é mágica, é uma ilusão portanto.
Do Viriato ao Ícaro
Tudo começou com o grito de Viriato e tudo acabou com a queda de Ícaro. Duas lendas. Dois sonhos? A história do Ícaro, na mitologia Grega, é conhecida pela tentativa falhada do desejo de voar próximo ao sol, que acabou por cair no mar Egeu, culminando na sua morte.
Em 1984 abriu aquela que foi durante algum tempo a única sala de cinema em Viseu, o Cinema São Mateus. Uma sala moderna para a época, com som, imagem e conforto de qualidade (com capacidade para 276 lugares), a sala foi muito bem recebida pela população da cidade. A qualidade da sala e da programação fizeram do São Mateus uma das mais respeitadas salas de cinema do país. Em 1994, o proprietário do São Mateus, João Figueiredo e Silva, abria uma nova sala de cinema em Viseu, o Cinema Ícaro, nas Galerias Ícaro, o primeiro cinema dentro de um centro comercial em Viseu. O Ícaro, que dispõe de cerca de 170 lugares, abriu com a exibição do filme “Quando o Céu e a Terra Mudaram de Lugar” de Oliver Stone.
“O CCV mostrou interesse em ocupar o S. Mateus, depois do encerramento da sala, mas a hipótese era tão cara que seria praticamente inviável. Infelizmente, vendeu-se o espaço para património. A Câmara, se fosse inteligente, tinha ficado com aquela sala para diversos fins: CCV, conferências, para tudo, estava montado com tudo. O imóvel foi vendido à Farmácia Oliveira. O Cinema Ícaro está entregue às Finanças.”(3)
O Cinema Ícaro encerrou as suas portas a 13 de fevereiro de 2005, com “O Aviador” de Martin Scorsese. O Cinema São Mateus encerrou a 10 de agosto de 2005, com “Um Amor em África”, de John Boorman.
Viseu dispõe hoje de dois multiplex, em dois centros comerciais, geridos pela NOS Audiovisuais, com 6 salas no Palácio do Gelo e outras 6 no Fórum Viseu, que por sua vez, não oferecem uma programação independente e alternativa, capaz de reflectir o que é o panorama mundial da produção cinematográfica. Viseu tem neste momento apenas uma única sala de cinema tradicional, que se encontra fechada desde 2005, que pode trazer à cidade uma diversidade de eventos cinematográficos que dinamizem a cultura da região. O Cinema Ícaro, a única sala de cinema de Viseu do século XX ainda existente, tem potencial para colmatar essa lacuna de oferta cinematográfica na cidade, e se houver visão por parte dos agentes culturais da região e por parte da Câmara de Viseu, tudo isto passará de um sonho a realidade.
Os grandes centros urbanos como Lisboa e Porto tem demonstrado interesse e iniciativa no investimento destes espaços para o desenvolvimento da cultura nas suas cidades. O Porto reabriu o Cinema Trindade e está em vias de reabrir o mítico Cinema Batalha. Em Lisboa reabriu-se, diga-se com muito sucesso, o Cinema Ideal. Em Bragança (note-se que é uma cidade do interior), por exemplo, a Câmara vai investir cerca de 270 mil euros para a reabertura da mais antiga sala de cinema da cidade. Ou seja, os cinemas estão a voltar às cidades, o público está a regressar ao cinema. As câmaras e instituições culturais estão conscientes desta realidade e do potencial cultural e económico para o desenvolvimento da cidade.
Viseu precisa do Cinema Ícaro. Recuperar o Ícaro é portanto relevante para a cidade e para aqueles que nela habitam. O Ícaro pode ter uma nova vida através de uma programação mais virada com destaque para o cinema independente e alternativo, sessões de exibição de clássicos do cinema mundial, assim como na realização de festivais e mostras de cinema e criação de eventos de natureza cultural e cinematográfica. Devolver à cidade um espaço que colmate a falta de oferta diversificada no sector cinematográfico na cidade, permitindo ao público a construção do olhar e novas formas de pensar. Sempre que a sala de cinema Ícaro existir, enquanto não a destruirem ou a transformarem num ginásio ou noutra coisa qualquer, há esperança. O Ícaro não morreu. Está apenas envelhecido e esquecido.
O Ícaro não tem claramente a mesma importância histórica que teve o São Mateus, ou o Cine-Rossio ou outras salas que existiram em Viseu. O Ícaro não é uma sala que tenha marcado uma geração de cinéfilos em Viseu. O Ícaro é pequeno comparado com todas as outras salas. Mas o Ícaro é um símbolo, o único, ainda vivo, representativo desse tempo passado e esquecido, em que as salas de cinema tinham uma grande força cultural na sociedade. Os cinemas eram capazes de mover multidões que esgotavam sessão após sessão, levando um filme a ficar em cartaz durante várias semanas seguidas. O Ícaro é representativo de tudo isto, de uma época que não volta mais. Por isto tudo, o Ícaro deve permanecer vivo, como um símbolo do que foi o Cinema na cidade de Viseu.
Artigo de Tiago Resende
Original em cinema7arte.com
REFERÊNCIAS
1) Retirado de Edgar Morin, O Cinema ou o Homem Imaginário. Lisboa, Relógio d’Água Editores, setembro de 1997;
2) Retirado de “Cine Cidade – As salas de cinema, os protagonistas e os filmes do Cine Clube de Viseu”, de Cine Clube de Viseu, 1ª edição / outubro 2008
3) Retirado de “Cine Cidade – As salas de cinema, os protagonistas e os filmes do Cine Clube de Viseu”, de Cine Clube de Viseu, 1ª edição / outubro 2008
Se disséssemos que éramos um bando de miúdos, um tanto sonhadores, que queriam fundar um site para escrever sobre cinema e que, por algum desígnio divino, pudéssemos fazer da vida isto de escrever sobre a sétima arte, seria isso possível? A resposta é óbvia: dificilmente. Todavia Isso não impediu o bando de criá-lo em 2008, ano da fundação do Cinema Sétima Arte. O espírito do western tinha-se entranhado em nós…
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