À Conversa sobre Livros com Daniela Bento

A leitura é, provavelmente, uma outra maneira de estar num lugar, escreveu o Nobel da literatura portuguesa, José Saramago.
Leituras Queer - conversa sobre livros
Leituras Queer

Fonte inesgotável de conhecimento e prazer,  poderosa ferramenta de influência e transformação política, a leitura e a liberdade intelectual chegam até a ser censuradas por regimes repressivos, ditatoriais e totalitaristas, levando a que a informação, o espírito crítico sejam negados a grande parte das pessoas. 

Em pleno século XXI, assistimos cada vez mais a discursos de ódio, à propagação do medo e de conteúdos de desinformativos quanto a questões de género e sexualidade. Na Europa, EUA, Brasil e um pouco por todo o mundo, assiste-se à criação de campanhas de proibição de livros de temática LGBTQIA+. Com base em justificações de “promoção da homossexualidade” ou da “propaganda da ideologia de género”, grupos ideológicos conservadores mostram atentar a autodeterminação, a liberdade de expressão, a autodescoberta e visibilidade das experiências de pessoas LGBTQIA+.

Recordando a célebre frase de Oscar Wilde, preso numa altura em que a homossexualidade era considerada como vício e decadência, diria: “Não existem livros morais ou imorais. Os livros ou são bem escritos ou não.”

Reconhecendo a importância da leitura e da educação para as temáticas de igualdade e não discriminação, pretendemos conhecer as estantes Queer e Feministas de algumas personalidades portuguesas. De forma a partilhar novos mundos que os livros encerram, questionamos:

Qual o livro que mais te marcou/influenciou pessoal e profissionalmente?

Não me é facil separar aquilo que me marca pessoal e profissionalmente, pois as minhas leituras resultam sempre em processos de reflexão que me levam a levar algo para ambos os lugares da minha vida, eles cruzam-se na minha pessoa e por isso não estão dissociados. Contudo, as minhas leituras são muito variáveis, desde a divulgação cientifíca até ao romance, passando pelo feminismo e pelo trabalho social.

Neste sentido há várias pessoas autoras que tenho imensa paixão de ler, ainda que algumas tenham bibliografias mais pequenas. Mas por certo, Julia Serano será uma das autoras que mais livros tenho lido dentro de uma prática feminista. Livros como Whipping Girl, Excluded e Outspoken foram muito importantes na construção da minha prática transfeminista. Foi nestes livros que vi pela primeira vez os termos “trans-misóginia” e “cissexismo” e isso foi importante para enquandrar a minha própria realidade. Também o livro “Transfeminismo” da Letícia Nascimento deu-me uma noção muito mais lúcida da realidade e dos questionamentos que necessitamos de fazer dentro da cisgeneridade.

Num caminho diferente, parte do meu processo terapêutico passou por conhecer outras histórias de sobrevivência e para isso agradeço a uma autora chamada Torey Hayden, que alimentou os meus anos 20 com histórias de crianças sobreviventes. Ainda que não fosse uma leitura com perspectiva de género ou LGBTI, ajudou-me  a criar ferramentas para lidar com as minhas próprias dificuldades o que potenciou as minhas descobertas nos anos seguintes enquanto pessoa LGBTI.

Algum autor/a com que te identificas mais e que segues há mais tempo?

É difícil para mim identificar-me com uma pessoa autora em particular, sou daquelas pessoas que ama livros, mas depois bloqueia porque não consegue ler o quanto gostaria. Contudo, apenas nos últimos anos comecei a ler mais sobre teoria de género, teoria queer e a estar mais atenta a histórias com representatividade LGBTI+ e Queer. Desta forma não consigo dar um nome de alguém que me identifique até porque eu própria estou num lugar de muita aprendizagem e de procura do meu próprio sítio dentro do que é a escrita, da realidade e da visibilidade. A procura de um referêncial ainda é um exercício difícil dentro do das minhas leituras.

Qual a leitura que acompanhas e recomendarias aos nossos leitores?

Posso recomendar os livros que já falei acima da Julia Serano (Whipping Girl, Excluded e Outspoken),  de Letícia Nascimento (Transfeminismo). Também o livro que estou a ler atualmente: Transfeminismo O Barbarie da Kaótica Libros. A coleção Feminismos Plurais para quem quer de forma acessível ter informação sobre diferentes lutas e construções do feminismo e alguns que tenho em fila para ler como Anseios de bell hooks e Um apartamento em Urano de Paul B. Preciado.

Daniela Bento (37 anos), ativista transfeminista, nasceu no meio rural e migrou para Lisboa, onde começou o seu exercício identitário e político. Assumindo-se como mulher, trans, não-binária, pansexual e anarquista relacional tem vindo a procurar ter uma prática feminista, procurando interseccionalidade e a radicalidade. Reenvidica a palavra radical, como parte de um um exercício que estabelece o radical na desconstrução do mundo. É também formada em Astronomia e Astrofísica e trabalha como Engenheira de Software. Faz parte de vários projetos de índule feminista, cooperando de diversas formas. É também parte da Direção da Associação ILGA Portugal e coordenadora do Grupo de Reflexão e Intervenção Trans (GRIT) da mesma associação. Mantém um blogue pessoal onde personaliza as suas lutas na área da saúde mental e LGBTI (http://www.danifbento.me).

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“Queer” = bizarro, excêntrico, estranho, não conforme. O termo serviu por mais de um século para associar a homossexualidade a doença, crime, pecado e exclusão social. Hoje, o conceito é usado como designação e/ou identificação da luta pessoal e/ou coletiva que critica e resiste às noções essencialistas de identidade.

Leituras Queer pretende ser um espaço de reflexão, partilha e divulgação de obras Queer e Feministas em português. Um espaço que, tornando visível as vidas Queer pretende desconstruir o tabu; a homofobia; os estereótipos e invisibilidade que continuam a ser alimentados num contexto internacional de ódio, conservadorismo e medo.

Este é um projeto que pretende empoderar, estimular o pensamento para novas práticas mais disponíveis para o diálogo horizontal e para a aprendizagem mútua.

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