Um livro é uma extensão da memória, uma forma de estarmos em outro lugar, fonte de prazer, estímulo do intelecto. Na celebração dos 48 anos da Revolução de Abril, data que suplanta o tempo de ditadura, recordo uma leitura que celebra a resistência a um regime de censura, repressão e tortura. Falo de “Homossexualidade e Resistência no Estado Novo”, primeiro livro da antropóloga e investigadora Raquel Afonso que, em 2019, trouxe a oportunidade de resgate das memórias de muitos e muitas que foram silenciados/as pela sua sexualidade durante o regime ditatorial mais longo da Europa, o Estado Novo (1933-1974).
Através de um conjunto de histórias de vida marcadas pela violência e pelo anonimato, a autora desafia-nos a explorar de que forma eram experienciadas as vidas homossexuais neste regime; como viviam e resistiram a uma invisibilidade forçada; qual a perceção coletiva da repressão sexual na época; os discursos e práticas criadas durante a ditadura; assim como das mudanças sonhadas com a instauração da democracia a 25 de Abril de 1974.
Entre a ignorância de um país marcado pela miséria e altas taxas de analfabetismo, da doutrinação católica sobre o ideal de família, da definição dos papeis sociais entre homem-mulher, de masculinidade e feminilidade, do tabu em torno da sexualidade e do seu destino meramente reprodutor, principal função encarregue à mulher, “a mãe extremosa”, “a esposa dedicada”, “a verdadeira fada do lar”, levaram à cegueira forçada da homossexualidade e, mais especialmente, da homossexualidade feminina. O especial desconhecimento relativamente ao lesbianismo e à homossexualidade como transgressão sexual, são premissas constantes no argumento deste livro, mostrando a preponderância da ordem social patriarcal e do poder sexual remetido ao masculino na construção do referencial da homossexualidade no período do Estado Novo.
A autora, mostra-nos como o termo “homossexualidade” é empregue por relação ao poder médico e judicial na intenção de perseguir e condenar quem recorria a esses “desvios contra-natura”. Entre os procedimentos terapêuticos de reversão da homossexualidade anunciados, enumeram-se a administração de drogas; a hipnose; tratamentos com eletrochoques; ou o trabalho fatigante em Casas de Trabalho ou Colónias Agrícolas, entre as quais o Solar do Dão na Mata do Fontelo em Viseu, onde os condenados/pacientes, poderiam passar anos a fio com a sua liberdade aprisionada.
Mas, se a homossexualidade era alvo de perseguição ou sentença de vida para muitos, para outros não era experimentada da mesma forma. A diferença de tratamento entre classes foi e continua a ser uma das formas mais distintas de experimentar a desigualdade, especialmente no que toca ao poder e regulação sobre os corpos e vida sexual. Recorrendo a casos concretos como o de João Villaret e de Virgínia Vitorino, figuras públicas em que a sua homossexualidade era conhecida e ignorada pelo regime, são-nos narradas as disparidades entre as extravagâncias permitidas aos mais ricos, das festas e orgias palacianas, à perseguição e extorsão sofrida pelos mais pobres apanhados em encontros fortuitos em locais públicos como os urinóis, jardins e parques de estacionamento vigiados pela PIDE.
Situação que, com a revolução de Abril, se desejava contrariar com o reconhecimento da igualdade de direitos sociais, do acesso à saúde sexual e reprodutiva, expectativa que mostra falhar. “O 25 de Abril não se fez para putas e paneleiros”, segundo general Galvão de Melo, do Conselho da Revolução. Foram necessários 12 anos para que a homossexualidade deixasse ser punida por Lei em Portugal (1986). No mesmo ano, a adesão à CEE e o contacto com agendas internacionais em prol dos direitos de género permitiria o início de uma agenda feminista a mãos dadas com a construção do movimento LGBTQI+. A epidemia do HIV-SIDA, a “peste gay”, vírus do preconceito e da discriminação, mostra também ter sido um catalisador para o reconhecimento público da homossexualidade, ainda que enviesado pelo pudor e discriminação.
Ao longo de 256 céleres páginas, Raquel Afonso, ajuda-nos a construir uma memória subalternizada pelos mecanismos de opressão que inviabilizaram o género e a sexualidade durante o Estado Novo, da caracterização de um país extremamente patriarcal e machista, das diferenças de género e classe no que toca à homossexualidade, do desenvolvimento de um sentido de identidade e solidariedade homossexual que, apesar dos avanços significativos em prol-da igualdade e autodeterminação de género nas últimas décadas mostram estar minados pelos perigo das forças ideológicas ultra- conservadoras, do fundamentalismo pós-apocalíptico religioso e do oportunismo da extrema-direita em torno da “ideologia de género”, procurando recuperar sua legitimidade e poder moral contrária aos Direitos Humanos, às conquistas emancipatórias que foram possíveis com a Revolução de Abril.
Daniel Santos Morais, 26 anos, Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Licenciado em Estudos Europeus pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.