Porquê celebrar o mês do Orgulho LGBTI+?

“Sem Orgulho para alguns de nós, sem Libertação para todos nós.” 
Marsha P. Johnson 

Cinco décadas após a inauguração do movimento de libertação homossexual nos EUA, marco definidor da identidade da comunidade Lésbica, Gay, Bissexual, Transexual, Intersexual por todo o mundo, importa refletir sobre a importância da celebração do Orgulho LGBTI+ desde a sua génese até aos dias de hoje. Importa olhar o trilho que percorreu na luta pela visibilidade democrática e do apelo à transformação de mentalidades, dos avanços e recuos que enfrenta ainda nos dias de hoje, dos discursos de reivindicação e de ódio a ele associados num momento em que os episódios de violência e preconceito continuam visíveis quer no espaço público e privado como nas tradicionais estruturas de poder da sociedade. 

Celebrar o mês de junho, mês do orgulho LGBTI+, é lembrar a história deste movimento, da luta pelos direitos das sexualidades e autodeterminação de género, da luta pela igualdade de oportunidades na diversidade e do direito à diversidade numa igualdade hegemónica que homogeneíza e oprime quem se mostra ser “contra-cultura”. A construção de movimentos de resistência à violência e intervenção cívica, através da aliança entre aqueles que marginalizados pela sociedade norte americana, gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, drag-queens, negros, latinos, mulheres, pessoas sem-abrigo, encontrariam nas ruas um espaço de revolta e protesto que se expandiria como exemplo a todo o continente americano e europeu. 

Falar de Stonewall é falar de Marsha P. Johnson, Sylvia Rivera e Stormé DeLarverie, rostos da ação revolucionária na luta pela conquista de direitos civis, pela visibilidade das pessoas gays e travestis, pela medicação e investigação do “cancro homossexual”, o HIV/SIDA, pela revolta e contra resposta à opressão do patriarcado percetível também dentro da comunidade LGBT, que discriminava positivamente Gays e Lésbicas entre os Transexuais, Travestis e Transgénero. 

Sintoma da dificuldade na aceitação da diversidade é nos mostrado a partir da evolução da sigla LGBTI+, que em 1980 viria substituir o termo comunidade Gay para Lésbicas Gays Bissexuais (LGB) não reconhecendo a visibilidade e pluralidade do T (Travesti, Transexual, Transgénero), sendo aceite dentro da comunidade (LGBT) apenas nos anos 1990. A integração da diversidade dentro do movimento como pessoas Intersexo, Queer, Assexuais, Pansexuais, Demisexuais, entre outras identidades inseridas no (+) de LGBTI+, foram consagradas gradualmente, ao longo das primeiras décadas do séc. XXI, mostrando certa metamorfose ainda nos dias de hoje. 

Como a sigla nos demonstra, a população LGBTI+ é tão diversa como a sociedade em que está inserida. Quando falamos de identidade falamos da diversidade de categorias que nela se relacionam e constroem. Questões como a raça, a classe, o género, a identidade sexual são categorizações sociais existentes que exercem uma influência direta na afirmação da identidade do indivíduo na sociedade, não devendo ser destrinçadas individualmente de forma a prevenir a segregação das pessoas em categorias pré-formatadas. 

Quando olhamos para estas diferenças e lidamos com elas como um todo, cumprindo a leitura da interseccionalidade na identidade individual e coletiva, entendemos os indivíduos enquanto sujeitos construídos em vários sentidos e dos diferentes papeis sociais que o constroem. A Interseccionalidade, conceito relativamente recente no espaço académico e político, traz-nos não só uma compreensão mais analítica das desigualdades sociais como permite uma leitura das hierarquias de diferenças propagadas por estruturas de poder patriarcais, capitalistas e racistas que atingem classes sociais, raças e etnias sem discrição. Poderíamos como exemplo exemplificar a figura da mulher, negra, lésbica, proletária e sem escolaridade, que carrega na sua existência um conjunto de vulnerabilidades que a subordina ao nível do expectável dos papéis sociais. 

No trabalho, nas escolas, hospitais ou tribunais, continuam a ser experienciadas formas de exploração e dominação identitária que remetem as minorias para um campo da sociedade que não se quer ver, criando nichos sociais desprovidos de direitos e de dignidade humana com base em estereótipos de género, de fundamentalismos ou tradições culturais. Os movimentos de politização da agenda LGBTI+, emergentes ao longo dos anos de 1980/1990, vieram criar condições de reconhecimento legal para os eixos do género e da sexualidade, tendo vário países despenalizado a homossexualidade como crime ou doença como também apostaram na construção de pontes de visibilidade e acesso aos direitos civis, como o direito ao casamento, à adoção, ou ainda a autodeterminação de género. 

Em Portugal, nos últimos 20 anos, foram muitas as conquistas ao nível do plano legislativo nestas matérias. Ainda com alguma resistência por parte de alianças políticas mais conservadoras, defensoras do papel moralizador da Igreja Católica na sociedade, assistimos à introdução da orientação sexual e da identidade de género como agravantes de crimes de ódio (2000); a aprovação da lei das Uniões de Facto que inclui pessoas do mesmo sexo (2001); da introdução do termo “homossexual” na lei portuguesa, estabelecendo o crime de homossexualidade com menores (2002); da discriminação com base na orientação sexual no Código de Trabalho (2003); da consagração da orientação sexual no princípio de igualdade na Constituição da República (2004); da criação da lei, no Código Penal, que protege os homossexuais da discriminação e ofensas à integridade física (2007); do crime de violência doméstica extensivo a casais do mesmo sexo, tal como as agravantes dos crimes de ódio baseados na orientação sexual (2007); da introdução do tema da homossexualidade na educação sexual escolar (2009); na promulgação da lei que permite o acesso ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (2010); da aprovação da lei de co-adoção (2013); da lei da adoção a casais do mesmo sexo (2016) e, mais recentemente, da lei sobre a autodeterminação da identidade de género e expressão de género e proteção das características sexuais de cada pessoa (2018). Um caminho que se fez de avanços e recuos mas que mostrara uma rutura com uma cultura que encarava a homossexualidade como vício “contra-natura” e que perpetuava a violência e o assédio sexual. 

Portugal é no plano legislativo considerado como um dos países mais gay-friendly da Europa e até do mundo. Com uma legislação exemplar no que toca à proteção dos direitos e liberdades das pessoas LGBTI+, sendo dos países da União Europeia com a menor taxa de violência física ou sexual e onde o preconceito se diz sentir reduzir, a realidade portuguesa ao nível da proteção dos direitos humanos é hoje consideravelmente diferente de há 20 anos. No entanto, apesar do considerável avanço no plano legislativo e do aparente sentimento de segurança social, o reconhecimento e respeito pela diversidade de identidades de género e das sexualidades parece ainda estar longe de ser garantido. 

Pessoas Bissexuais, Transsexuais, Transgénero, Intersexuais, Pansexuais, entre tantas outras identidades que continuam a ser descredibilizadas e alvo de chacota dentro e fora da comunidade LGBTI+. A patologização de pessoas que não se identificam com o seu género, com as características sexuais ou orientação sexual, continua a ser perpetuada por força de uma heteronormatividade esclarecida. Os discursos de ódio, boicotes de marchas e manifestações do Orgulho advindos de grupos de extrema-direita, a defesa da celebração do orgulho heterossexual e da assunção que os homossexuais reivindicam mais direitos que a maioria da população, mostram a fobia à igualdade de direitos humanos e proteção das liberdades da comunidade LGBTI+. O racismo sistémico e sistemático na realidade LGBTI+ continua a matar; o bullying nas escolas por meio da diferença continua a ser perpetuado entre as demais gerações; a não aceitação da identidade de género e a mutilação genital de crianças intersexo mostram a violência grotesca no direito à autodeterminação individual, entre tantas outras querelas que mostram estar longe de ser solucionadas e que realçam a necessidade de fundamentar este mês como um mês de orgulho e de força de luta para o resto do ano. 

Assim, falar do mês do Orgulho LGBTI+ é, sem dúvidas, falar de cidadania, da promoção da cultura democrática, da solidariedade e da coesão social. Celebrar o mês do Orgulho é lutar pelo entendimento da construção das identidades pessoais e coletivas e das condições de vida no seu conjunto. É dar atenção às necessidades e especificidades das pessoas independentemente dos papéis que possuam na sociedade. É estar atento ao risco de opressão e homogeneização das culturas dominantes e das idiossincrasias dos grupos minoritários. É valorizar a diferença e aceitar a igualdade. Celebrar o mês do Orgulho é mostrar respeito pelo pluralismo cultural, pela rejeição das desigualdades, preconceitos e racismos. Celebrar o mês do Orgulho é elevar a voz em defesa da democracia e da não tolerância ao tratamento de cidadãos como parte de uma segunda categoria. É usar a memória dos que por nós soaram sangue para continuar a trilhar o caminho de sociedades mais justas. Celebrar o mês do Orgulho LGBTI+, é lembrar a busca pelo potencial humano na luta pela diversidade do ser, sentir e pensar sem fronteiras ideológicas ou geográficas.

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Daniel Santos Morais, 26 anos, Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Licenciado em Estudos Europeus pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.

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