Os Carris também têm Memória

Comboio / Linha do Tua
Foto por Phil Richards from London, UK – 09.11.93 Tua 9028, CC BY-SA 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=26697011
Completam-se hoje 29 anos sobre aquela que passei a tratar como “A Noite do Roubo”, um dos  mais infames episódios da História Ferroviária Portuguesa. Numa operação de 12 mil contos,  que a imprensa brigantina carimbou de “acto de pirataria”, a CP recolheu na estação de  Bragança uma locomotiva e várias carruagens, que depois transportou para Mirandela… em  camiões. 

Vivia-se a incerteza sobre o futuro da Linha do Tua entre Mirandela e Bragança, depois do  descarrilamento de Dezembro de 1991 em Sortes, e a suspensão do tráfego ferroviário nesse  troço de 80 km. Enquanto se empurrava para a frente qualquer decisão oficial, a CP negociava  com os ferroviários adstritos a Macedo de Cavaleiros e Bragança a sua migração para outras  estações, ou o despedimento. 

Tudo culminou na noite de 13 para 14 de Outubro de 1992, quando vários camiões surgiram  sub-repticiamente pela manhã na periferia de Bragança, suscitando de imediato o alarme  popular, e executando a complicada operação só a coberto da noite – mas certamente já não a  coberto do incógnito pretendido, no meio de um até hoje inexplicável apagão nas  telecomunicações. A via permitia perfeitamente a circulação de material circulante, pelo que  esta temeridade maquiavélica só encontrará um vislumbre de lógica no facto de, nesse interregno, a população ter barrado tanto a via como os autocarros de substituição com toros  de madeira e reboques agrícolas, em Salsas e nos Cortiços. Afinal de contas, até os brandos  costumes têm limites, quando se é vilipendiado de forma desavergonhada. 

Apesar de ser o seu capítulo mais negro, a história do desmantelamento quase total da ferrovia  em Trás-os-Montes é rica em episódios de um Estado que onde não foi tirano, foi negligente. A  forma como as Linhas do Sabor, Corgo e Tâmega foram também elas eliminadas, nesses tempos  como nos mais recentes, partilha os mesmos procedimentos: vias degradadas, velocidades  reduzidas, horários desajustados, material circulante envelhecido, promessas ocas de  reabertura, carris vorazmente levantados. Dois distritos inteiros ficaram subjugados à rodovia,  encarecendo tanto a circulação de matérias primas e produtos, como de pessoas. 

O futuro, esse, é paradoxal. Os mesmos autarcas que não promovem a mais basilar discussão  sobre a ferrovia no território, são os mesmos que “exigem” que o Governo central construa uma nova via do Porto a Bragança e à linha de Alta Velocidade de Madrid à Corunha, e os mesmos ainda que promovem a ocupação do canal ferroviário de todas as vias férreas com ecopistas. Promoção essa que conta com o apoio incondicional da Infraestruturas de Portugal ao mais alto nível, sancionando que se ocupem corredores ferroviários para passeios a pé e de bicicleta, num território pejado de percursos para tal mas a envelhecer e a perder população de forma alarmante, sem sequer se elaborar um estudo de viabilidade da sua reabertura. 

A auto-estrada ferroviária de quatro mil milhões de euros, estimativa do estudo publicado pela  associação Vale d’Ouro, não é uma via de proximidade, e, portanto, tem uma valência não  desprezível, mas também não abrangente. Aliás, o próprio estudo aponta para a necessidade  imutável e urgente da reabertura da Linha do Corgo, especificamente. Algo que continua válido  e tem sido defendido também para as demais Vias Estreitas do Douro. 

Que esta efeméride seja recordada então como o grito que ecoou nas ruas de Bragança nesse ano de 1992: “Queremos o comboio, somos PORTUGUESES!”. Porque não podemos ser escravos  da mediocridade alheia, nem hipotecar o futuro dos filhos deste território, que têm direito a  ajudá-lo a florescer e a renovar-se.

Daniel Conde
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Trasmontano, natural de Vinhais (nascido no Rio de Janeiro) em 1984. Frequentou dos 10 aos 14 anos o Colégio Salesiano de Poiares da Régua, onde viajou frequentemente na Linha do Tua, nascendo aí o seu interesse pela sua salvaguarda. Licenciado em Gestão pelo ISCTE (2002-2007), e com pós-graduação em Turismo pela ESHTE (2008-2010).
Fundou o Movimento Cívico pela Linha do Tua em 2006, estando sempre na linha da frente da luta contra a barragem do Tua, escrevendo vários comunicados e artigos de opinião, entre participações em debates. Em Dezembro de 2010 fundou o Movimento Cívico pela Linha do Corgo, com menos actividade que no MCLT. Deixou ambos os movimentos em meados de 2015, mas nunca se afastando da divulgação e defesa destas vias-férreas, a par da da Linha do Sabor, sobre a qual criou um estudo de reabertura, publicado no livro "A Linha do Vale do Sabor - Um Caminho-de-Ferro Raiano do Pocinho a Zamora".
Foi Assessor de Gestão no Metro de Mirandela entre 2009 e 2012, promovendo algumas mudanças, mas sendo sempre boicotado em vários esforços pela Administração.
Em 2010 ficou em 3º lugar no concurso nacional de empreendedorismo "Realiza o teu Sonho", da Acredita Portugal, com um projecto de Turismo Ferroviário na Linha do Tua. A CP nunca quis reunir para conhecer o projecto.
Tem publicado no seu canal no YouTube alguns estudos de reabertura de troços ferroviários, nomeadamente da Linha do Corgo entre a Régua e Vila Real.

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