“O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir.”
– Djamila Ribeiro, O que é o lugar de fala?
8 de março de 2021, dia internacional pela justiça e dignidade de género. Dia político e intersecional à luta feminista, antirracista, anticapitalista, entre outras lutas que se dedicam ao exercício e respeito dos direitos humanos. Um dia em que, usualmente mulheres e homens saem à rua para reivindicar um lugar de fala marginalizado pela subordinação sexual de um patriarcado racista e classista. Um dia para celebrar a longa e dura batalha feminista contra a opressão e violência baseadas na binariedade dos papeis de género impostos pelas sociedades capitalistas.
Neste dia é de especial importância revisitar o conceito de género. Uma construção social, decorrente de um contexto histórico e cultural, que se fundamenta no sexo atribuído à nascença para reforçar as estruturas de poder entre masculino vs. feminino. Falarmos de género é falarmos da submissão e opressão que recai maioritariamente sobe o sexo feminino e das pessoas não binárias. É, uma vez mais, recordar um Portugal que há 47 anos privava as mulheres do direito ao voto, que não permitia a sua realização profissional, que pela lei as tutelava aos pais e maridos, que trivializava a violência doméstica e os femicídios.
Falar de género é falar dos movimentos feministas que vieram introduzir na cena política internacional uma agenda que rompe com a invisibilidade a que estão sujeitas, com o afastamento do espaço público e arena política em prol do ideal de mulher doméstica, da prestação de cuidados e assistência familiar. Denúncias que trouxeram mudanças no ordenamento jurídico nacional e internacional ao nível da igualdade de género e que erroneamente se consideram como dados adquiridos: Pequim+15; ONU Mulheres; OIT; Convenção de Istambul; Legislação Europeia; entre outras agendas políticas nacionais que se pautam pelo combate às formas de discriminação.
O acesso pleno a direitos universais, a igualdade entre sexos, o direito das mulheres ao corpo, aos direitos das pessoas LGBTI+, são temas cada vez mais recorrentes ao escrutínio da opinião pública, mas que apesar disso mostram a resistência das assimetrias entre mulheres e homens no acesso aos poderes e direitos. E porquê? Já que existem tantos dispositivos legais que os criminalizam…
O controlo da sexualidade feminina e formas de violência que a envolvem continuam a ser perpetuados pelas normas hierárquicas nas sociedades capitalistas que, através da fusão do género, raça e classe, criam narrativas específicas de discriminação e desigualdade. Logo desde cedo, o ensino nas escolas é direcionado para a cisgeneridade e heterossexualidade dos alunos, condicionando a promoção da diversidade e das oportunidades de participação na vida social e no mundo do trabalho.
Desta forma importa falar de feminismos. Sim, feminismos no plural, para afirmar o espectro diverso das mulheres e das diferentes experiências de opressão que vivenciam. Das diferentes hierarquias sociais a que pertencem e que as oprimem. Para falar da necessidade da força interseccional contra o patriarcado, o racismo, a homofobia e a repressão sexual. Diferentes planos de discriminação (social; económico; geográfico; político) não devem ser analisados de forma separada uma vez que, em conjunto, criam formas específicas de opressão. Angela Davis, ativista, feminista, negra, nos anos 1980 já nos mostrava como o sexo, raça e classe social se relacionam na forma como criam discriminação e opressão vivida pelas mulheres negras.
As mulheres negras que foram sistematicamente marcadas pela violência e opressão de género, da raça e do estatuto económico. Sistematicamente silenciadas, sendo-lhes negado o direito de autorrepresentação dentro de um movimento feminista tradicional privilegiadamente liberal, branco e heterossexual. Surge assim o feminismo negro como lugar de fala de todas as das mulheres negras como contraponto à estrutura de opressão castradora das vozes e existências. Um feminismo que reivindica o reconhecimento da autoridade das minorias para aceder à sua cidadania, para libertar a sexualidade da procriação e da normatividade da família, das restrições de género, de classe e raça.
Também em Portugal, país com uma descolonização por cumprir, de discurso negacionista do seu passado além-mar, vai permitindo as lógicas de desigualdade e discriminação com base nas estruturas de poder patriarcal, colonialista e capitalista. Em Portugal, mulheres negras, ciganas e imigrantes continuam a ser a força de trabalho mais barato e explorador, ocupando as profissões menos qualificadas. O número de assassinatos e femicídios também não para de aumentar, tendo em 2020, sido mais 30 mulheres assassinadas em situações de violência doméstica, situação que se vê agravar com o ambiente de confinamento requerido pela pandemia COVID-19.
Compreendendo o longo caminho pela desconstrução das relações de poder emanadas pelos princípios de identidade de género, orientação sexual, raça e/ou condição social, é iminente a necessidade de um movimento feminista global que possibilite um lugar de fala interseccional e que repolitize o Dia Internacional da Mulher. Um dia que não se limita à reflexão das questões de género, mas que se junta ao combate de todas as formas e princípios de discriminação predatória. Um dia que ocupe o lugar de fala de todos os corpos oprimidos, e que seja fonte de esperança para toda a Humanidade.
Daniel Santos Morais, 26 anos, Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Licenciado em Estudos Europeus pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.