Dois meses após o registo dos primeiros casos de contágio, de um longo período de emergência nacional e agora numa fase gradual de desconfinamento, contabilizando um total de quase 30 mil infetados e de 1.300 mortes em Portugal, as restrições sociais vieram alterar rotinas e dar lugar a outras formas de sociabilidade. Perante ruas e cidades vazias motivadas pelas limitações de circulação e de cercos sanitários, do encerramento de serviços públicos e de milhares de postos de trabalho abandonados, do aumento do número de desempregados e dos efeitos de uma crise económica já visíveis, da desconfiança ao regresso à vida pública e com quem nela nos cruzamos por medo de doença ou contágio, as consequências deste vírus estão presentes e acompanhar-nos-ão nas nossas vidas.
Debrucemo-nos sobre o impacto que o vírus obriga às populações de um ponto de vista da quarentena e confinamento social. O confinamento social, que começa agora a ser aligeirado, veio privar muitos de nós do contacto com familiares, amigos ou vizinhos, levando em que muitas circunstâncias nos deixássemos acompanhar por uma solidão abonatória de sintomas como a ansiedade, a depressão e o stress pós-traumático. Estes são riscos extensíveis ao conjunto alargado da população mas com diferentes graus de prejuízo e impacto sobre os estratos sociais que se esbate, decalcando as desigualdades sociais presentes nas diferentes franjas da sociedade em que a precariedade faz parte do seu quotidiano.
Aqueles que sofrem de discriminação, desigualdade ou preconceito como as mulheres, idosos, imigrantes, pessoas sem-abrigo, portadores de deficiências, minorias sexuais (LGBTI+), ou mesmo os profissionais do sexo, mostram carregar o estigma a que (a)normalmente já estão sujeitas, mas agora com um risco acrescido pelas consequências restritivas que o vírus propaga. Segundo dados do SNS, desde 19 de março, altura em que foi imposto o confinamento em Portugal, os pedidos de socorro às linhas de apoio à violência doméstica dispararam, registando 308 pedidos de ajuda1. Relativamente às pessoas homossexuais, bissexuais, lésbicas, transexuais e intersexo, estima-se que 941 pessoas tenham recorrido ao apoio de associações LGBTI+, mostrando-nos a violência e discriminação de quem entre quatro paredes vive uma luta dupla, a do estigma social e do risco e exposição ao contágio de COVID-19.2
Sobe os efeitos desta crise sanitária, o aumento da discriminação, dos discursos de ódio e ataques aos grupos minoritários tendem a acentuar-se e tornar-se mais visíveis sendo apontados como facilitadores de contágio, serve-nos de retrato a relação estigmatizante dos homossexuais ao HIV/SIDA ainda presente nos dias de hoje. A sobrecarga dos serviços de saúde e suspensão ou redução de cuidados tende a criar uma disparidade no seu acesso, discriminando, por exemplo, o tratamento de pessoas LGBTI+, por via do recurso a tratamentos hormonais e de afirmação de género a transexuais. O número de países a utilizar a pressão social que o vírus carrega para enaltecer valores conservadoristas e discriminatórios, como é o caso da Hungria que impede as pessoas trans de mudar legalmente o seu género em documentos de identidade, ou no Panamá que adotou restrições de movimento com base no sexo, alternando entre homens e
mulheres os dias em que estes poderiam sair de casa, colocam na berlinda a consagração do respeito pela liberdade e igualdade de oportunidades em detrimento
da identidade de género ou características sexuais.3
Muitos são os que devido às razões de confinamento, obrigados a viver em ambientes familiares hostis, veem aumentar a sua exposição à violência, à ansiedade e depressão. As famílias, que para muitos é vista como protetora, para outros é identificada como fonte de violência e de mal-estar. A discriminação por via da identidade/expressão de género e orientação sexual é sintomática disso. Segundo dados de um relatório preliminar da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e da Universidade de Coimbra, sobre o estudo “Redes de Apoio Social e Saúde Psicológica em Jovens LGBT+ durante a pandemia de Covid-19”, numa amostra de 632 jovens LGBT+ com idades entre os 16 e os 35 anos, mostra que a maioria dos inquiridos se sentia desconfortável na sua família (59%), e que 35% dos jovens sentiam-se muito ou extremamente “sufocados/as” por não poder expressar a sua identidade LGBTI+ com a sua família, por medo ou receio da reação dos familiares ou ainda ao afirmarem que os mesmos lidavam mal ou muito mal com o conhecimento da sua identidade LGBTI+ (35%).4
Sendo na adolescência e início de idade adulta que as pessoas LGBTI+ fazem o seu primeiro coming out e partilham com amigos e família a sua orientação sexual e identidade de género, estando nos tempos de COVID-19 longe das fontes primárias de apoio e expostos ao preconceito e/ou discriminação, torna a que esta situação de emergência social venha deixar mazelas na autoestima e saúde psicológica de milhares de pessoas que enfrentam os primeiros passos na luta de auto-determinação contrapondo a imposição de representações sociais heteronormativas e patriarcais.
A importância do contributo que este estudo nos oferece é inegável, permitindo-nos desvendar a invisibilidade do medo e do preconceito sentidos no seio de famílias LGBTI+, sensibilizando as famílias e a sociedade em geral para a luta contra a discriminação e as formas de violência que estas realidades transportam. No entanto, não descuidando da pertinência da pesquisa, deve entender-se o desfasamento entre os números estudados e a leitura holística da interseccionalidade LGBTI+, sendo ainda desconhecidos dados relativamente à saúde física e psicológica das dificuldades causadas pelo vírus em pessoas LGBTI+ na terceira idade, nos trabalhadores e, em particular os trabalhadores sexuais, pessoas com deficiências, sem abrigo, imigrantes, refugiados, entre tantos outros que experienciam os efeitos duplos deste vírus de uma forma mais cruel.
Ressalva importante é o papel de combate a estas formas de desigualdade por parte das redes de associações e ONG ́S que prestam apoio gratuito e presencial, por telefone ou via Web, a pessoas que tenham sido colocadas em situações de risco particular pela pandemia. Desde o aconselhamento e apoio psicológico, a oferta de abrigo temporário, o apoio a situações de violência familiar, doméstica ou no namoro, ao suporte de famílias homoparentais e esclarecimento de questões relacionadas com a orientação sexual e identidade de género, é vasto o numero de associações portuguesas que a Comissão da Cidadania para a Igualdade de Género promove5, entre as quais: ILGA Portugal; Casa Qui; Casa Arco-Íris; Amplos; Associação Plano I – Centro Gis; Panteras Rosa; Clube Safo; OPUS Diversidades; Associação Tudo Vai Melhorar, entre tantas outras que durante e depois deste isolamento oferecem ajuda, quer aos jovens quer à
população LGBTI+ em geral, no regresso a uma quotidiano que respeite as suas diferenças.
Nesta fase de desconfinamento e de regresso à normalidade pouco ou nada natural, não sabendo ao certo o que nos espera após o mundo-COVID-19, mas tendo a certeza das mudanças operadas nas nossas vidas, desde o emprego até às formas de sociabilidade e relação que temos com o mundo, leva-nos a um repensar da vulnerabilidade e valor da vida humana, do desejo da liberdade e do contacto com os outros, das perceções sociais e da nossa relação com as mesmas. Da importância em que nos dias de hoje é tornarmo-nos agentes de promoção de novos modos de vida, atentos e solidários a todos os que por meio da sua condição ou realidade social sofreram as consequências mais duras do vírus. Desde o apoio a pessoas que vivem situações de carência, através de bens alimentares, medicação ou abrigo, da necessidade de criação de medidas de apoio e oportunidades ao trabalho, mas também no que toca à denúncia e luta contra as formas de opressão e violência que reduzem o ser humano a rótulos de escárnio e mal dizer. Sendo Portugal um país que, apesar do avanço legislativo e do trabalhado das associações que se esforçam para o progresso do movimento LGBTI+ e dos direitos de género, mostra ainda existir um armário que invisibiliza estas pessoas, sendo tarefa de todos nós lutar pela sua visibilidade e pelos desequilíbrios existentes, ajudando os que por medo são deixados para trás. Não deixemos ninguém ficar para trás, tolerância zero a todas as formas de violência!
1 SNS: COVID-19 |Violência Doméstica: https://www.sns.gov.pt/noticias/2020/04/29/covid-19-violencia-domestica/
2 TVI24: https://tvi24.iol.pt/sociedade/direitos-humanos/covid-19-pelos-menos-900-pessoas-lgbti-pediram-ajuda-durante-confinamento
3 United Nations Human Rights: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/LGBT/LGBTIpeople.pdf
4 Gato, J., Leal, D., & Seabra, D. (2020, Maio 17). Redes de apoio social e saúde psicológica em jovens LGBT+ durante a pandemia de COVID-19: Relatório de divulgação de dados preliminares.
5 CIG: COVID-19 |ONG https://www.cig.gov.pt/lgbti/covid-19-ong/
Daniel Santos Morais, 26 anos, Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Licenciado em Estudos Europeus pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.