Felizmente já temos televisão e computadores.Felizmente a heroína já não é só o feminino de herói.
Felizmente podemos escolher o género com que nos identificamos.
Felizmente já ninguém acredita que do outro lado do mundo ninguém anda de pernas para o ar.
Felizmente que ninguém precisa de uma licença para ter um isqueiro.
Felizmente temos a hipótese de possuirmos o que queremos.
Felizmente, hoje, temos liberdade.
Exm@s. Tod@s,
esta semana, n’A Voz de Trás-os-Montes, li uma “crónica” de um transmontano, desterrado em Lisboa, e, ao que parece, com saudades de “um tempo” bafiento. Ora, para o cronista, e estou a citar, “nos anos 50, o silêncio era de ouro e a palavra de prata”. Esquece-se, o cronista, que, nos anos 50, o silêncio não era de ouro, nem a palavra era de prata. A censura era de ouro, era bem mais castradora, e o cronista não teria tido a liberdade de escrever uns disparates aqui e ali. Não, não nos esquecemos!
Continuei lendo um chorrilho de disparates, quando o autor refere “A heroína era apenas o feminino de herói. A medida do amor, era amor sem medida. Só havia dois sexos”. Pois bem, a heroína já não é só o feminino de herói. A heroína faz parte da nossa sociedade, é uma realidade, é uma dependência que afeta uma franja da sociedade e que felizmente o seu consumo tem vindo a diminuir, sendo o combate a este problema social uma referência em termos internacionais.
Para o autor é difícil compreender a diferença entre sexo e género. Não iremos aqui fazer uma explicação, pois estamos certos de que o seu preconceito dificilmente o deixaria compreender. É sim, revelador um profundo desconhecimento da realidade do século XX e XXI da existência de cidadãos que não se identificam com o género biológico. Esta ideia bacoca mostra a forma como estes saudosistas vivem amarrados aos cânones de uma pseudo-moral superior impostos por um regime bafiento. Sim, hoje temos a liberdade (é disso que se trata) de escolhermos o género com o qual nos identificamos. Deixou de ser crime.
Já lá vai o tempo quando aqueles que habitavam as grandes metrópoles achavam que tudo o que saía das grandes cidades era apelidado de província. Entenda-se, aqui, a conotação pejorativa associada ao termo. Ainda subjaz uns resquícios dessa aceção (1). É só ler a tal crónica. Mas pior do que os “outros” nos acharem provincianos, é o transmontano se sentir provinciano. Ao contrário do cronista, nenhum transmontano alguma vez achou que “sendo a Terra redonda, então no outro lado do mundo vivia-se de cabeça para baixo”. Acho um desrespeito esta observação referindo-se a uma comunidade que vivia assombrada por um regime de influência fascista e que promovia a ignorância, a pobreza, o trabalho infantil… Por muito dura que a vida fosse, os transmontanos não eram os provincianos que os outros achavam que eram.
Depois de todos os delírios bacocos, remata apontando o Serviço Nacional de Saúde (SNS) como um problema, quando o SNS é uma conquista humanitária. Mais grave que ter uma opinião errada sobre a sociedade do século XXI, é fazer comentários que a solução para as suas [dele] maleitas é recorrer “a um hospital privado”. Para quem tanto anseia um regresso aos anos 50, esquece-se de como era viver num país que não assegurava o direito de acesso aos cuidados de saúde de todos os cidadãos. Até à criação do SNS, os cuidados eram prestados no leito familiar ou em instituições privadas, ou simplesmente não havia cuidados. Quando se defende que a solução é recorrer ao privado é falar, como se diz na gíria, de barriga cheia. E bem cheia.
Os constantes ataques ao SNS, por quem nunca o quis, cria instabilidade no serviço. Objetivamente, os profissionais estão descontentes e zangados pelo constante desrespeito dos sucessivos governos. Mas de uma coisa não nos podemos esquecer: o Serviço Nacional de Saúde português é dos melhores sistemas de saúde do mundo (2).
Portugal mudou.
Tivesse eu nascido nos anos 50 e, provavelmente, teria medo de escrever esta carta. Se calhar até a escreveria, mas não chegaria onde poderá chegar hoje. A queda do Quinto Império não foi obra de deus, como o mito assim previa, mas foi consequência da luta contra este discurso saudosista.
Resta-me terminar esta carta aberta referindo que não tenho qualquer autoridade para emitir juízos de valor acerca do que este cronista escreveu. Apenas o fiz como forma de alerta para as confusões que se vão criando aqui e ali sobre “um tempo” a que ninguém quer que se volte.
A liberdade de se escrever o que se quer não pode (voltar a) ferir aqueles que foram feridos. A liberdade, material, deve ser construída por todos e com todos.
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Segundo a Infopédia, aquele que habita uma província é sinónimo de pacóvio (1)
Varela, Raquel (2019) História do Serviço Nacional de Saúde em Portugal. Âncora Editora (2)
Linguista, investigador científico, feminista e ativista social.
Nascido em Lisboa, saiu da capital rumo a Terras de Trás-os-Montes e cedo reconheceu o papel que teria de assumir num interior profundamente desigual. É aí que luta ativamente contra as desigualdades sexuais, pelos direitos dos estudantes e dos bolseiros de investigação. Membro da Catarse - Movimento Social, movimento que luta contra qualquer atentado à liberdade/dignidade Humana. Defende a literacia social e política.
(O autor segue as normas ortográficas da Língua Portuguesa)